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Símbolo de luta contra racismo e segregação completa 100 anos

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Membros da 1ª diretoria do Centro Cívico - Fotos: Acervo MTC e Arquivos Pessoais/ Divulgação

Em 1918, a área urbana de Lages era dividida entre o Centro e cerca de três bairros. Um destes era o Bairro da Brusque, habitado por ex-escravos e seus descendentes, que se estruturavam em busca de dignidade e respeito.

Em âmbito nacional, completava-se 30 anos da abolição da escravatura, porém a maioria da população negra não tinha seus direitos respeitados e ainda sofria com o latente racismo e segregação.

Tanto ex-escravos quanto seus descendentes eram proibidos de frequentar muitos espaços destinados para a alta sociedade branca. Por isso, desde muito antes da abolição da escravatura, que aconteceu em 1888, a população negra, por todo o Brasil, começou a fundar clubes próprios, onde pudessem socializar, resgatar suas raízes e lutar em busca de dignidade.

Em meio a este cenário foi fundado em Lages o Centro Cívico Cruz e Souza que, neste sábado (22), completa 100 anos. O clube foi a terceira sociedade negra do estado de Santa Catarina e o fato de resistir ao tempo e as dificuldades financeiras o transforma em um ícone da luta da negritude lageana contra a segregação e o racismo.

Em setembro, como parte das comemorações pelo centenário, o Núcleo de Estudos Afro Brasileiros da Universidade do Planalto Catarinense (Neab/Uniplac), lançou o documentário “Centro Cívico Cruz e Souza – Memórias de um Centenário”, que conta a história da agremiação.

Agnaldo Timóteo Recebendo uma lembrança (Buquê) da menina Dione Aparecida do Amaral

Entidade agregou famílias discriminadas

Segundo a coordenadora do Neab/Uniplac, Nanci Alves da Rosa, os negros que moravam no Bairro da Brusque tinham, em sua maioria, subempregos, como limpadores de fossas, lavadeiras e artesãos, dentre outros. Com a chegada do Batalhão Ferroviário a Lages, essas famílias começaram a ter empregos fixos, com salário mensal, o que lhes assegurou certa dignidade.

Estes trabalhadores eram os frequentadores do Cruz e Souza que, pela primeira vez, eram protagonistas do espaço. Isso porque, até então, sempre que os negros entravam em algum dos clubes já existentes (que só aceitavam brancos em sua lista de sócios) era na condição de músicos, para entreter a alta sociedade.

“O patrimônio do Cruz e Souza para Lages vai além da cultura e história. Este local conseguiu agregar as famílias que eram discriminadas, não tinham acesso à escola, à ciência, nem à questão laboral. Nós somos fruto dessa geração que foi resiliente e que lutou pra ter um lugar aonde pudessem ter seus encontros, onde pudessem ter uma identificação étnica”, avalia Nanci.

Segundo ela, a intenção do clube, à época de sua fundação, ia muito além de oferecer entretenimento, pois foi através do Cruz e Souza que a alfabetização chegou à muitas pessoas. Ter em seu nome a palavra “cívico”, mostra que o local tinha o intuito de oferecer civismo.

“A partir daí a cultura afro-brasileira foi cada vez mais tomando conta e ganhando espaço. Eles tinham regras de moral, de conduta. Escutei de várias pessoas que foi no Cruz e Souza que aprenderam como tratar uma moça, como conversar com uma senhora, como se portar. Gestos e atitudes que, depois transferiam aos seus filhos”.

Registro de um dos tradicionais bailes promovidos no Cruz e Souza

Clube reafirma a identidade negra no Planalto

De acordo com o professor da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Eráclito Pereira, clubes negros surgiram Brasil muito antes da abolição da escravatura e tinham como principal objetivo a articulação e organização política e social de seus grupos. Em Santa Catarina, esses clubes surgiram especialmente no período pós abolição, como uma resposta ao processo de segregação social e racial impostos aos negros.

“Os Clubes Sociais Negros, na sua origem, além do congraçamento de seus sócios, faziam aquilo que o Estado Brasileiro deixava de fazer, a começar por políticas sociais públicas como direitos previdenciários e educação, por exemplo”.

Para Pereira, o Centro Cívico Cruz e Souza atua como um espaço de afirmação da identidade e memória negra da região. Reconhecendo a importância e relevância do clube, em 2013, quando concluiu o mestrado na Universidade Federal de Santa Maria, Pereira escolheu como tema de sua dissertação o clube lageano. O trabalho, com levantamento histórico, fotos e relatos em mais de 100 páginas, leva o nome de “Centro Cívico Cruz e Souza: Memória, Resistência e Sociabilidade Negra em Lages”.

“O Cruz e Souza está inserido no meu território de identidade e pertencimento, e mantém-se aberto desde sua fundação, reafirmando a identidade negra no planalto serrano. Essa luta de afirmação existencial da população negra também é minha. A relevância de se trabalhar sobre os Clubes Sociais Negros do Brasil, se dá pelo fato de que neles estão inseridas histórias e memórias de uma significativa parcela da população negra, que não congelam no tempo e no espaço, mas que podem ser dinamizadas em ações que proporcionem manter viva a memória, legitimação e poder de mulheres negras e homens negros que ainda hoje, sofrem com a discriminação de gênero, raça e classe”, avalia.

Pereira ressalta que o clube é espaço de representatividade, identidade, memória, resiliência e sociabilidade negra. “Em meio aos descasos inerentes ao patrimônio cultural, o Cruz e Souza resiste há 100 anos e caracteriza-se, também, enquanto espaço de articulação política e construção do conhecimento, uma instituição capaz de promover a prática de cidadania e de (re)integrar a comunidade negra lageana, ora afastada do ‘mundo’ clubista”, completa.

Casal de Porta-bandeira e Mestre Sala, Cleia Barbosa e Cabeça

A cidade ainda precisa do Centro Cívico

Desde que o primeiro africano escravizado que chegou ao Brasil, nos primórdios do período colonial, a resistência negra se estabeleceu e se mostra necessária em nossa sociedade até os dias de hoje. A afirmação é da historiadora doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), Mirian Branco.

“Os escravizados resistiram de muitas maneiras, mantiveram muitos dos seus costumes, defenderam suas crenças, reuniram-se em quilombos. O Centro Cívico Cruz e Souza é parte dessa história de luta. Seu nascimento ocorrido 30 anos depois da abolição do regime escravocrata no Brasil se liga à fase em que, em âmbito nacional, o movimento negro se organiza e se difunde na tentativa de dar acesso e garantir à população negra os mais básicos acessos, como a moradia, a educação ou ao trabalho”.

Segundo ela, o clube foi concebido por pessoas preocupadas com a situação dos negros em Lages à época e logo se tornou espaço de promoção de um tipo específico de resistência, a resistência propiciada pela educação, pela participação política, pela troca de experiências e conhecimentos, pelo diálogo com as elites lageanas daquele tempo.

“Nos dias de hoje, 100 anos depois, a cidade mudou, as gerações passaram, mas a luta negra ainda não acabou, ela tomou novas formas, mas está muito longe de acabar. Nem todos os acessos foram garantidos e a cidadania ainda não é plena. As demandas do povo negro se atualizaram ao longo dos anos”.

Dentre as demandas da população negra, Mirian ressalta a necessidade de cuidar da saúde da mulher negra, que precisa de trabalho e salários dignos; de cuidar das crianças negras que lotam as escolhas públicas e anseiam por uma educação de qualidade; de proteger o jovem negro da violência oferecendo-lhe trabalho e oportunidades e, dessa forma, garantir viver a velhice com amparo e dignidade.

“Por tudo isso, o papel do Centro Cívico é tão necessário hoje, quanto o era ontem. O Centro faz parte da história da cidade, atravessou com ela o século XX e permanece com ela no século XXI. Quantas associações tiveram tal longevidade? A cidade precisa cuidar do Centro Cívico pois ele é seu patrimônio”.

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