EXPEDIENTE

REPORTAGEM: Núbia Garcia e Suzane Faita

IMAGENS: Vinícius Prado

DIAGRAMAÇÃO E DIREÇÃO DE IMAGENS: Gisele Bineck

EDIÇÃO E REVISÃO: Cláudia Pavão

EDITOR CHEFE: Mauro Maciel

DIREÇÃO GERAL: Isabel Baggio

AGRADECIMENTOS:

  • Andressa Ramos, jornalista
  • Floricultura Sempre Verde (Isolda Pahl, Kátia Pahl e Thayse Rocha)
  • Mariana Rodrigues
  • Natacha Luana
  • Secretaria de Políticas para a Mulher (Bernadete Casa Liston e Marli Nacif)

O LUGAR MAIS PERIGOSO É A CASA

No começo dos anos de 1980, quando casou pela primeira vez, Petúnia, que hoje tem 57 anos, conheceu uma realidade que não estava preparada para enfrentar. Em toda a sua vida, ela nunca foi assaltada enquanto voltava do trabalho ou do supermercado à noite, mas a possibilidade de que isso acontecesse não lhe provocava tanto medo quanto ficar sozinha com o ex-marido, com quem foi casada por 10 anos.

Ao contrário do que a maioria das pessoas pensam o lugar mais perigoso para as mulheres não é a rua, tampouco um beco escuro. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o lugar mais perigoso para as mulheres é a própria casa. Petúnia é prova de que isso é real.

Pouco tempo depois do casamento, quando tinha apenas 19 anos, ficar entre quatro paredes com quem lhe jurou amor eterno era o maior de seus pesadelos. “A primeira agressão aconteceu com 15 dias de casados. Estávamos ‘namorando’ e ele surtou, começou a me chamar de vagabunda e a me bater no rosto e nas costas. Como eu não tinha quem me apoiasse, demorei muito tempo pra me separar. Eu sentia vergonha de pedir ajuda porque ninguém entendia o que estava acontecendo.”

Depois de 10 anos sofrendo todo tipo de violência e sendo privada do convívio social, em meio a uma de várias ameaça de morte vindas do então companheiro, Petúnia fugiu de casa para nunca mais voltar para aquela relação abusiva. “Quando a gente apanha, os hematomas e ossos quebrados curam, mas as feridas da alma duram para sempre.” Petúnia e as outras mulheres que contaram suas histórias para esta reportagem especial do Correio Lageano sofreram de seus companheiros violência moral, patrimonial, psicológica, sexual e física, além de alienação parental, que é a manipulação psicológica dos filhos, colocando-os contra a mãe, pai ou outros familiares.

Algumas até foram encarceradas em suas próprias casas pelos parceiros. A diferença entre a história de Petúnia e os próximos relatos que você conhecerá aqui, é que quando ela foi vítima, entre os anos de 1980 e 1990, sentia-se sozinha e não sabia para quem pedir ajuda, pois tinha medo até mesmo quando procurava a polícia. “Muitos me perguntavam o que eu tinha feito pra apanhar daquele jeito. Diziam que em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Quando se separou, em 1992, enfrentou muito julgamento negativo – de amigos, familiares e da própria justiça, mas o medo de morrer nas mãos do companheiro e deixar seus três filhos à mercê dele, a fez ter coragem e ser firme na decisão.

Se naquele tempo Petúnia sentia-se sozinha, hoje as mulheres vítimas de violência doméstica em Lages podem romper as barreiras destas paredes que as cercam de violência, pois têm a quem recorrer. Elas contam com uma rede de proteção humanizada que as ouve, entende as histórias de vida e oferece ajuda.

Nesta reportagem, para evitar que sejam identificadas (especialmente por seus agressores), os nomes das vítimas não serão revelados. Ao invés disso, assim como Petúnia, cada mulher terá seu nome substituído pelo nome de uma flor, pois, assim como flores que murcham ao serem retiradas de seus habitats, estas mulheres também tiveram seu brilho e vivacidade arrancados por alguém que prometia cuidar delas. Com a ajuda da rede de apoio, agora têm a oportunidade de caminhar em direção a uma nova vida, onde poderão viver livres, crescer fortes e ter sua intensidade apreciada pelo mundo.

Esta reportagem especial abrange este caderno, um webdocumentário (que você confere abaixo), e um podcast (ao final do texto, sobre os bastidores da reportagem), todos disponível nas mídias digitais do Correio Lageano.

AMARILIS

Em 30 anos de relacionamento, Amarilis perdeu as contas de quantas vezes foi agredida pelo marido. As agressões físicas que mais provocaram machucados emocionais foram as sofridas durante as seis gestações. Na primeira, logo no início do relacionamento, ela sofreu um aborto depois de uma discussão com o marido que, à época, era apenas seu namorado. “Em todas as gestações fui agredida. Não escapei uma gravidez ilesa, nunca pude ficar calma e serena pra receber meu bebê.”
Além dos tapas e socos, as agressões psicológicas eram constantes. O marido atacava o emocional e menosprezava Amarilis dizendo que ela não era uma boa mulher, nem uma boa mãe, tampouco uma boa cristã.
O ciúme descomedido e desnecessário, causa de quase todas as brigas do casal, revelou-se logo nos primeiros meses de relacionamento. Ainda durante o namoro, Amarilis levou um tapa no rosto, enquanto estavam em uma festa. O motivo? Ciúmes. “Quando a gente começou a namorar ele demonstrou que era muito ciumento, mas eu era novinha e não tinha a visão que tenho agora. Então, não entendia que era errado.”
O comportamento do marido, que além de ciumento era usuário de drogas, por muitos anos, privou-a de várias coisas: ela não trabalhava fora de casa, não tinha grupos de amigos, nunca estudou. Há alguns anos, começou a fazer trabalho voluntário na igreja que o casal frequenta. Foram dois meses de atividades que ela descreve como “um verdadeiro inferno”. “Ele tinha tanto ciúme dos meninos que também faziam trabalho voluntário, que um dia arrancou o celular da minha mão porque achava que eu estava tendo conversas inadequadas com alguém. Me deixou roxa.” Ao longo dos anos e em diferentes situações, foram pelo menos quatro celulares quebrados pelo mesmo motivo.
O constante menosprezo e as agressões, além de outros problemas familiares, levaram Amarilis a um profundo quadro de depressão.Ela, inclusive, tentou suicídio. Acreditava ser a única alternativa para acabar com o sofrimento. Há alguns anos começou um acompanhamento com uma psicóloga e, com isso, acredita que está aprendendo que não é culpada pelas agressões que sofre.
“Em 2018, foi a primeira vez, em toda a nossa história, que ele admitiu que tem parte de responsabilidade na nossa relação. Antes, a culpa das discussões e agressões sempre recaíam nas minhas costas. Eu aprendi que tenho responsabilidades, mas eu não sou culpada como ele e outras pessoas tanto dizem. Ainda tô aprendendo a me dar valor e reconhecer o que tenho de bom.”
Muito religiosa e temente a Deus, Amarilis ainda não se separou de vez porque acredita na manutenção da família, especialmente depois que o marido começou a reconhecer que também é responsável pelos problemas do casal. “Ainda tô numa eterna busca pela cura do meu casamento. Não perdi as esperanças.”

AZALÉIA

A separação de Azaléia é recente e muito dolorida, porque as marcas desse processo estão por todos os lados. Foi exposta pelo ex-companheiro nas redes sociais e por conta de mensagens falsas perdeu o emprego. Mesmo com a medida protetiva, não conseguiu ficar segura, porque o agressor usou de outros meios para atingi-la. Foram diversos perfis falsos atribuídos a ela. “Eu sou a vítima e tenho que lutar para provar que sou a vítima, porque está tudo conspirando contra.”
Falar disso dói tanto, que quase não consegue verbalizar e as lágrimas rolam pelo rosto.
Ela teve de sair de casa com o filho e somente com algumas roupas. Auxiliada pelas profissionais da Secretaria Municipal de Políticas para Mulher de Lages, voltou para buscar seus pertences, inclusive, seus documentos. Os 10 anos de relacionamento, foram de humilhação e opressão, teve agressão verbal e física, que tem dificuldade em contar, porque ainda ferem sua alma.
A decepção foi aumentando porque, desempregado, o ex-marido não buscava uma colocação, só ficava em casa assistindo televisão e não cuidava da casa. Era ela quem tinha de dar conta dos trabalhos domésticos, mesmo trabalhando o dia todo.
Azaléia não consegue vislumbrar um futuro, ainda está na fase de sofrimento, e sente dificuldade em pensar de forma positiva. O que tem certeza é que não quer retomar o relacionamento com o ex-companheiro.

GARDÊNIA

Gardênia ainda está na casa dos 20 e poucos anos e não faz muito tempo que conseguiu sair de um relacionamento abusivo que durou 10 anos. Também foi há pouco tempo que ela descobriu que não é normal apanhar do próprio marido e que ela pode (e merece) ter uma vida diferente. Até então, acreditava que a situação era normal, pois cresceu vendo a mãe apanhar do pai e, na sua concepção, era correto o marido descontar suas frustrações na esposa.

O estopim para a separação foi uma crise de agressividade do ex. Bêbado, ele quebrou janelas, móveis e eletrodomésticos da própria casa utilizando um facão. “Foi nesse momento que consegui enxergar que tudo isso era demais, um absurdo, e que a minha vida e a dos meus filhos corria risco.”

Foi quando isso aconteceu que ela buscou ajuda. Pediu a separação e conseguiu uma medida protetiva, mas o homem com quem viveu por tantos anos ainda tinha muita influência sobre ela. Ameaçando-a, ele conseguiu convencê-la que deveria voltar para casa e prometeu mudar. “Acreditei nele, retirei a medida protetiva e desisti de me separar, mas não adiantou nada. Ele ficou um ano sem me bater. Bebia e me xingava muito, mas não me batia.”

O ex sempre tinha muitas desculpas para menosprezar e agredir a esposa, como o andamento dos afazeres domésticos e o cuidado com os filhos. As brigas se intensificavam e as agressões aconteciam sempre depois que ele bebia. “Pra ele, tudo era motivo pra brigar. Se não tinha algo, ele criava um motivo.”

Há alguns meses, Gardênia se encheu de coragem e pediu novamente a separação. Sem se amedrontar com a medida protetiva, o ex-marido anda nos arredores da casa onde ela mora com os filhos e já chegou a abordá-la, ameaçando-a para que retire o pedido de pensão alimentícia. “Mas eu não vou tirar porque é direito das crianças.”

 

A família de Gardênia tem um histórico de violência. Além do pai, que batia na mãe sem dó nem piedade na frente dos filhos, uma de suas irmãs (da qual era muito próxima) foi vítima de feminicídio há alguns anos. Tudo isso levou-a a um quadro de depressão profunda. “O meu ex nunca respeitou isso e sempre exigiu que eu ficasse bem, sempre tive que cuidar dele, da casa e das crianças, mesmo quando não estava bem.”

JASMIN

Os vizinhos que viam Jasmin andar de braços dados com o marido pela rua acreditavam que eles eram um casal exemplar. Quando ela ia pegar o ônibus para trabalhar, ele ia junto. Se ia ao mercado ou padaria, ele sempre estava ao lado. A atitude, que para os vizinhos parecia algo romântico e sinônimo de zelo, escondia um comportamento agressivo e controlador.
O agora ex-marido não admitia que Jasmin fosse a nenhum lugar sozinha, pois era muito ciumento e acreditava que ela o trairia se saísse de casa sem a sua companhia. “Até pra cortar o cabelo no salão era problema. Se demorasse mais do que ele queria, já desconfiava e brigava comigo.”
Em meio a uma das inúmeras agressões sofridas durante os mais de 28 anos de casamento, Jasmin teve um ímpeto de coragem, falou que queria a separação e que iria embora. A fúria do marido foi tão grande que ela fugiu de casa com hematomas por todo o corpo, o rosto inchado e com o couro cabeludo exposto, pois os puxões lhe arrancaram partes do cabelo.
Ela só conseguiu fugir porque um dos filhos a ajudou. Correu para a casa de outro filho, onde foi amparada. “Saí correndo, descalça e só com a roupa do corpo. Eu tava com muito medo de morrer.”
Semanas depois, enquanto caminhava na rua, foi abordada pelo ex, que a obrigou a entrar no carro que ele dirigia. “Pra minha sorte, ele parou em um lugar público. Eu só conseguia pensar que isso era bom porque se algo acontecesse eu poderia pedir socorro.” Para se livrar da situação, ela precisou ligar para uma pessoa conhecida, que foi até o local e ficou conversando com o agressor para que ela pudesse sair do carro e ir pra casa. “Fiquei com muito medo dele.”
A instabilidade financeira do casal foi um dos motivos para as agressões físicas, mas Jasmin conta que há cerca de 10 anos, depois que o ex conseguiu um emprego fixo, as agressões físicas pararam e só voltaram a acontecer no fim do relacionamento.
“Ele é muito machista. Sempre me dizia que eu nunca podia estar triste, só ele tinha direito de chegar em casa com a cara triste porque trabalhava fora.” Mesmo quando começou a trabalhar, Jasmin não podia gastar o próprio dinheiro consigo mesma. Separada, ela consegue fazer coisas simples como ir ao salão e jogar conversa fora com as amigas.
O sogro de Jasmin também espancava a esposa e ela acredita que o comportamento do ex era normal. Depois da separação, apenas um cunhado ficou contra ela e, em defesa do irmão, fala mal de Jasmin e tenta desconstruir sua imagem para amigos e familiares.
Passados meses da separação, Jasmin ainda não conseguiu se restabelecer completamente. Está frágil e sente medo de sair de casa e encontrar com o ex. Usa apenas roupas que ganhou porque não pôde retirar nada de casa. Com o rigor deste inverno, conta com a solidariedade de algumas amigas e colegas de trabalho para ter roupas mais quentes.

“Ele é muito machista. Sempre me dizia que eu nunca podia estar triste, só ele tinha direito de chegar em casa com a cara triste porque trabalhava fora.”

CAMÉLIA

Uma nova paixão e o que parecia ser o começo de uma linda história, transformaram-se em um pesadelo. Camélia conheceu o homem com quem foi casada por sete anos, quando o primeiro casamento estava acabando. A primeira separação aconteceu de comum acordo e, talvez por isso, o primeiro marido tenha sido um aliado para que ela tivesse coragem de dar fim aos sete anos de brigas, surras e humilhações causadas pelo segundo esposo.

Como em muitos outros casos, o segundo casamento de Camélia também foi marcado por inúmeras agressões causadas por ciúme descomedido e sem fundamento. “Ele inventava coisas que não faziam sentido, porque quando eu não tava trabalhando, tava em casa com a mãe dele. Ele chegava a ligar pra mãe dele pra saber se eu tava em casa.”

Certa noite, Camélia foi levada para o hospital com um braço quebrado. Lá, contou para todos que havia caído e se machucou. O enfermeiro que a atendeu até tentou instigá-la para que contasse o que havia acontecido, dizendo que sabia que aquele machucado tinha sido provocado por alguém, mas ela não teve coragem de se abrir e manteve a mentira.

A verdade que ela não conseguiu revelar é que, em meio a uma das agressões, o agora ex-marido a empurrou e para evitar bater de cabeça no chão ela se apoiou no braço, o que provocou a fratura. Além da violência física, as humilhações eram constantes. Qualquer coisa era motivo para que o agressor a menosprezasse e a chamasse por vários palavrões.

“Cada vez que a gente brigava acontecia alguma coisa. Primeiro machucou meu dedo, depois quebrou meu braço. A próxima seria o quê? A minha perna? A minha vida? A gente brigava e depois voltava e acontecia uma agressão pior que a outra. Pelos meus filhos, eu tomei a decisão de me separar.”

Depois da separação, o ex já foi até o trabalho de Camélia e a ameaçou. “Disse que se eu não voltasse pra casa ou se ele me visse com alguém na rua, ele ia me matar. Mesmo com a medida protetiva, ele ficava me atazanando. Ele não acreditou que eu iria embora, mas saí e agora não volto mais atrás. Meus filhos precisam de mim viva.”

Como a separação aconteceu abruptamente, ela saiu de casa apenas com as roupas que considerava mais importantes, para usar no trabalho. Quando voltou para buscar mais, alguns dias depois, foi impedida. O ex disse que ateou fogo nas botas e casacos dela.

“Com o meu primeiro marido sempre teve muito respeito e a gente mantém diálogo por causa dos nossos filhos. Com o segundo não tem conversa, ele vive inventando coisas. Tenho medo e não quero ele por perto, porque ele ainda tenta me humilhar.”

“A próxima seria o quê? A minha perna? A minha vida? A gente brigava, voltava e acontecia uma agressão pior que a outra.”

Tulipa

As marcas da violência ainda estão no rosto da jovem mãe. As lágrimas são de tristeza por ser mais uma vítima. É quando fala do pai, que nunca falou alto com ela, que se emociona. “Meu pai se sentiu culpado por não ter me protegido, e a gente vai ter de conviver com isso”. Apesar da dor, prefere contar o que passou e tirar a angústia do peito. 

O relacionamento de dois anos já havia terminado e nos seis meses que estavam separados o ex-marido queria voltar, mas Tulipa não queria, estava focada em reconstruir sua vida ao lado da filha e voltar a estudar. Ele, por sua vez, estava namorando, mas sempre que a encontrava na rua, era agressivo. “Se me encontrava na rua, xingava de todo nome de baixo calão”. Queria ter a vida de solteiro e ela deveria ficar em casa cuidando da filha e recebê-lo quando a procurasse. Quando estavam casados era ciumento, não gostava de algumas amigas e queria escolher o lugar de trabalho dela.

E foi numa das tentativas de visitá-la que as agressões aconteceram. Mesmo com a medida protetiva invadiu a casa sem que ela percebesse e quando estava ligando para a polícia começou a ser agredida. “Colocou a mão no meu pescoço e disse: eu vou te matar”. A filha do casal presenciou toda a violência e o pedido de socorro da mãe. Foram momentos de terror, em que era espancada e só pensava em proteger a filha. Quanto mais gritava pedindo ajuda, mais apanhava. Ao perceber que os vizinhos estavam ouvindo e chegavam para ajudar, o agressor pulou a janela em fuga, mas foi preso pela Polícia Militar. 

Tem medo de sofrer novas agressões ou que ele comece a persegui-la. “Eu sei que a culpa não é minha, mas a gente não sabe o que passa na cabeça dele, pode ser que tenha raiva”. Ela se deu conta de que há muitas outras mulheres na mesma situação, pelas inúmeras mensagens que recebeu de desconhecidas que também sofreram agressões de companheiros. Percebeu que muitas pessoas gostavam dela  e se solidarizaram com sua história.

Dália

Quando decidiu colocar fim no relacionamento, novamente foi vítima de agressão. Ela estava decidida, mas o ex-companheiro não aceitou e ela recebeu socos e uma tentativa de estrangulamento.

Ao contar a história da sua vida, poucos dias após a separação, estava muito sensível, e assustada. A filha, que a acompanhou durante toda a entrevista, contou que sempre viu a mãe apanhar, desde os cinco anos de idade, já percebia que ela sofria física e emocionalmente com a violência do pai. “Quando eu era pequena sentava e chorava, agora que posso fazer alguma coisa, estou tentando.”  Mãe e filha choram. O pai culpa a filha pela decisão da mãe, não consegue perceber que foi a atitude dele que acabou com o relacionamento. “Sempre tive ressentimento dele, porque cresci vendo isso, preferia crescer sem pai do que ver o que eu vi”, conta enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto. 

Dália ficou casada por 25 anos, e só quando as filhas ficaram maiores é que teve coragem de dizer basta, pois percebeu que não estava certo viver com violência. Foram elas, as filhas, que abriram os olhos da mãe e deram coragem para se separar. “Sempre apanhei, mas fui tendo mais filhos e pensava: como vou largar, como vou sustentar? E me submetia  a viver assim”. Só agora, passados todos esses anos, ela consegue entender que merece respeito. Teve períodos da vida que a violência era tanta que quase desistiu de viver. “Teve uma época que ele chegava e eu, simplesmente, deitava para apanhar.” 

Após a separação, teve de recorrer a medida protetiva, porque o ex-companheiro se tornou ainda mais agressivo. “Sinto medo e estou apreensiva.” Dália tem um temperamento reservado, não gosta de discutir, e o fato de não responder verbalmente às agressões do ex-companheiro era mais um motivo para ser agredida. “Ele se irrita com a maneira que me defendo, de ficar quieta”. O uso de álcool e drogas ilícitas potencializavam o perfil agressor. A sogra sempre acompanhou tudo e, apesar de não concordar com o que o filho fazia, acabava protegendo o filho. Quando ele gastava todo o dinheiro e passava dias fora de casa, ela comprava a comida que faltava. “Eu trabalhava e ela me ajudava a comprar roupas e calçados para as meninas, ele nunca teve responsabilidade.” 

Dália nunca conseguiu contar para a família o que sofria, pois tinha vergonha. Os anos e o relacionamento fizeram com que tivesse medo de encarar a vida sem o companheiro. “Não é que goste, estava acostumada com ele.” Agora, separada, quer dar um bom exemplo para as filhas e orgulho a elas. 

Açucena

Ainda adolescente, Açucena foi afastada do convívio familiar após denúncia de abuso sexual praticada pelo próprio pai. O que poderia ser triste, foi um alívio. Pois só assim as violências física e sexual acabaram. Pelo menos por um tempo. Mais velha, retornou ao convívio familiar e os problemas voltaram, pois os abusos voltaram a se repetir. Atualmente, ela mora de favor na casa de uma família.

A relação com a mãe é conturbada, e dá para perceber muita mágoa ao lembrar da infância. Quem poderia protegê-la quando criança, permitia que o pai a violentasse. 

O trauma dessas violências estão bastante presentes, porque além do progenitor, o irmão também a agrediu e a violentou. “Pai que é pai não faz o que ele fez.” 

As marcas no pescoço denunciam a última agressão de outro familiar, foi com faca, quando voltava sozinha para casa, depois de uma sessão de cinema. O fato de ela ter denunciado os familiares para a polícia, foi o que motivou a violência. “Ele [o agressor] é daqueles que se aproveita porque mal consigo me defender e não tinha ninguém naquela hora para me ajudar.” Ela acredita que o objetivo dele era matá-la, porque só parou de agredi-la quando pessoas passaram pelo local. 

As ameaças fizeram com que demorasse para ter coragem e contar às profissionais da Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher que mais uma vez havia sofrido agressão. O medo é constante na sua vida, e também o abandono, porque é privada do convívio familiar. Tem muito receio de falar sobre o assunto, de ser exposta, julgada pela sociedade e voltar a ser agredida. Com o auxílio das profissionais da Secretaria foi até a Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e idoso (Dpcami) e fez nova denúncia, porque já há uma medida protetiva que determina que o agressor não se aproxime de Açucena, mas ele a descumpriu. A Polícia Militar também acompanha o caso.

Trabalha e sonha em voltar a estudar, pois não conseguiu terminar o ensino médio. “Só falta matemática e português, vou fazer pelo Ceja (Centro Integrado de Educação para Jovens e Adultos), porque é mais fácil para mim.” Atualmente, mora de favor com uma família e está tentando reaver a guarda da filha que está em processo de destituição familiar. Quer, no futuro, ter o seu espaço, arrumar uma casa e, quem sabe, ficar com a filha. “Sonho em alugar um espaço para mim e não depender de mais ninguém, quero ser dependente de mim mesma”..

Margarida

Tímida e com voz baixa, Margarida de 32 anos começa a contar como foram os quatro anos de tormento da vida ao lado do antigo marido, com quem conviveu por oito anos, e há três está separada. Ela é sobrevivente de uma tentativa de feminicídio. Foram quatro tiros disparados contra ela, nenhum a atingiu. As humilhações e as dores foram muitas, como a vez que foi arrastada pelos cabelos na rua do bairro em que mora. 

O ciúme sempre acompanhou o relacionamento, mas se intensificou depois do nascimento do filho e quando começou a trabalhar fora de casa. Por diversas vezes, foi trancada dentro da residência e ameaçada de morte. “De certo, as pessoas falavam alguma coisa para ele, e ficava com ciúmes, daí me trancava dentro de casa para eu não ir trabalhar.” Quando ela era auxiliar de produção, gostava do trabalho, mas teve de abandonar por causa das ameaças do ex-companheiro. Por diversas vezes, teve de sair escondida para conseguir chegar ao emprego. “A polícia foi três vezes no meu serviço porque saia fugida para trabalhar. Tinha medo de denunciar porque ele ameaçava me matar.” 

O filho do casal também foi usado para forçar Margarida a voltar para casa, quando, pela primeira vez, decidiu pôr fim ao relacionamento, depois de anos de violências. Como ele ameaçava levar o filho para longe, ficou uma semana, recuou e voltou para casa. “Foi a pior viagem, quando voltei, tentou me estrangular, deu socos na minha cabeça e cortou meu cabelo.” 

Sádico, preferia bater nela com socos e pontapés, mas também deu facada no braço e tentou asfixiá-la. Além da violência física, havia as ofensas e os xingamentos. “Vagabunda, puta, tudo que você pode imaginar, falava para mim, já me chamou de feia, que ninguém ia me querer com dois filhos, que eu não servia para nada.” Essas palavras cravaram como um punhal em seu peito e acreditava que realmente não era nada. “Tudo que me falam, me falavam, porque agora sou bem confiante, eu acreditava”. Depois da separação, conheceu outras pessoas. Tentou ter um novo relacionamento, mas por conta da perseguição do ex-companheiro, não deu certo. “Eu não dependo de homem, sempre trabalhei e me virei sozinha.” 

Se ficasse quieta, sem conversar, era acusada de estar pensando em ‘macho’ e apanhava, assim como ao se recusar a ter relações sexuais. Para convencer a mulher ao sexo, era carinhoso e gentil. “Toda vez que bebia tentava me forçar [a fazer sexo]. Logo depois que começou a me agredir bastante, não tinha vontade de ficar perto dele. Tenho nojo dele.” A gota d’água foi em uma data festiva, quando, ao recusar um carinho dele, foi jogada na cama e o tormento começou. “Pegou no meu pescoço, começou a bater na minha cabeça e cortou meu cabelo. Acho que eu desmaiei, não sei o que aconteceu, quando acordei vi umas pessoas dentro de casa.” 

Entre os vizinhos impera a lei do silêncio, ninguém nunca chamou a polícia depois de presenciar agressões. Vale aquela máxima, de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” e, por isso, muitas vezes, as mulheres agredidas acabavam mortas. “A maioria das pessoas querem saber o que acontece, não porque querem teu bem, mas porque são curiosas e fofoqueiras.” No bairro em que mora, relata que tem uma amiga que apanha do marido. “Eu até conversei com ela sobre a casa de proteção, mas tem muito medo de denunciar, porque ele é usuário de drogas.” 

O caso dela preocupa muito as profissionais da Secretaria Municipal de Política para a Mulher. Apesar de ter uma medida protetiva, que deveria impedir a aproximação, ainda não está segura, porque já desrespeitou outras vezes. “Se ele já tentou duas ou três vezes me matar, da próxima vez, tentará de novo, esse é o meu maior medo.” Teme também pelos outros membros da família. Para o futuro, espera conseguir um bom emprego de carteira assinada e ir para um lugar melhor, saindo de perto do ex-marido.

Violeta

Aos 34 anos, Violeta não tem o perfil estereotipado de uma vítima de violência doméstica. Fala com segurança e olha nos olhos do interlocutor com firmeza. Quem a vê não consegue perceber o medo que passou nos 13 anos de relacionamento, e que é sobrevivente de uma tentativa de feminicídio. No começo, viveu uma grande paixão, com um homem que era carinhoso e a tratava muito bem. “Eu convivia com uma pessoa há 14 anos. O primeiro ano que ficamos juntos foi uma maravilha. No ano seguinte, tudo começou a mudar, com agressões e ameaças.” O ciúme que sentia era a sua ‘justificativa’ para as agressões verbais e psicológicas, e também para o controle que exercia sobre a vida dela. O fim do relacionamento – quando concedeu a entrevista fazia 20 dias da separação – foi por conta de traição. Ela viu na infidelidade uma oportunidade de se livrar de uma prisão sem grades. 

Violeta não tinha controle do seu corpo, nem do dinheiro fruto do próprio trabalho. Não podia se arrumar, porque era acusada, pelo ex-marido, de estar flertando com outros homens. “Nunca tive o prazer de pegar o dinheiro do meu trabalho e comprar uma camiseta para mim, recebia o salário e o dinheiro ia para a mão dele. Vai comprar roupa para quê? Não tem roupa? Quer se mostrar para quem? Passar batom para quem?”. As poucas vezes que arrumava o cabelo e usava uma roupa mais bonita era para visitar os pais, para que não percebessem que havia algo errado. “Se vocês virem o meu guarda-roupa! Não posso dizer que isso aqui (mostra o casaquinho de lã) eu comprei, tudo eu ganhei, ele não deixava eu comprar, me privou de tudo”. Quando trabalhou em um local que oferecia uniforme, não podia fazer o mesmo que as outras pessoas que trocavam de roupa do local. “Toda mulher é vaidosa, mas até isso ele conseguiu tirar de mim”.

Quando chegava do trabalho, depois de um dia cansativo, não podia tomar banho antes de o marido chegar, porque ele tirava a sua roupa e a tocava. Queria ‘conferir’ se Violeta tinha se relacionado com alguém. “Isso é vergonhoso, você trabalha o dia inteiro e a coisa que você mais quer é chegar em casa e tomar um banho. Teve uma vez que me bateu por isso, porque tomei banho antes dele chegar”. Em uma das ocasiões que apanhou, foi com pancadas de capacete na cabeça, o que resultou em um problema de visão.

Mas as humilhações não foram somente entre quatro paredes. Perdeu a conta das vezes que foi traída pelo ex-marido, e uma das mulheres era a amiga para quem contava sobre as agressões e com quem chorava. “Ele me traiu várias vezes e não escondia. Trouxe até uma mulher para apresentar para a família, desfilou de mãos dadas pela cidade [na Serra Catarinense].” 

Na tentativa de feminicídio, ficou na mira de uma arma branca durante quase 24 horas, sem que pudesse avisar a família. Tentou pedir ajuda para desconhecidos, deu sinais que estava sendo ameaçada de morte, mas não teve sucesso. Quando foi socorrida, após gritar por ajuda, o ex-marido fugiu e ela abraçou os policiais da Rede Catarina. Depois disso, permaneceu por cerca de uma semana na Casa de Acolhimento, em Lages.

Antes disso, nunca denunciou o ex-companheiro. No começo, porque queria salvar o casamento e, depois, por medo. “Eu fiz de tudo e mais um pouco para a gente viver bem.” O ex-companheiro ameaçava também a família dela. “Se denunciasse, pegava o meu celular, jogava e dizia: pode denunciar, quero ver o que vai acontecer depois dentro da cadeia, já mando fazer o serviço [matar] de lá mesmo, pelo fato dele ter conhecimentos na vida do crime.” 

Na frente das pessoas a tratava bem e fazia carinho, como um homem apaixonado, mas essa delicadeza durava pouco. “Saia a visita e ele já vinha com grosseria, muitos ciúmes. É uma pessoa doente”. No começo, quando ele batia, ela reagia, com o passar do tempo, viu que não tinha forças para isso. “Eu dizia, quando podia abrir a boca: você quer que fique com você por medo ou por amor? E ele dizia: não me interessa, você é minha mulher e eu te amo e pronto, é o que basta.” 

Ela acredita que com a medida protetiva, ele ficará longe. Confiante no futuro, quer voltar a estudar. Quando jovem, queria ser jornalista. Pretende voltar a trabalhar e cuidar de si, pois, nos anos de relacionamento, teve de assumir um papel que não era seu. Deixou a vaidade de lado porque não tinha liberdade nem para usar um batom. “Sempre trabalhei, não tenho medo de trabalho, se for para limpar banheiro eu limpo, o importante é ter meu dinheiro, porque não estava com ele por amor ou porque me dava as coisas, muito pelo contrário, há um bom tempo era eu quem sustentava a casa. Estava com ele por medo.” 

Quando Violeta morou fora de Lages não tinha com quem conversar. “Sofri por não conhecer ninguém e não confiar em ninguém.” Ela chama a atenção para as pessoas que podem presenciar uma agressão ou ouvir o grito de socorro de uma mulher, para que não ignorem. “Peço que as pessoas escutem. Quando a gente chega ao ponto de pedir ajuda, não é brincadeira, ninguém vai pedir socorro à toa, por nada, realmente me senti muito desamparada, achei que, talvez, na primeira vez que pedisse ajuda alguém ia me ajudar,  não foi o que aconteceu. Em questão de segundos tudo pode acontecer.”

Lages conta com Casa de Apoio para abrigar mulheres

Para dar suporte em casos de violência extrema, quando a mulher vítima de violência doméstica e seus filhos correm risco de vida, a rede de proteção de Lages conta com uma importante ferramenta. Desde 2013, a Casa de Apoio a Mulheres em Situação de Violência – Rosalina Maria Rodrigues, abriga, temporariamente, aquelas que precisam sair de seu lar para romper o ciclo de maus-tratos. Em seis anos, já foram acolhidas 125 mulheres e mais de 120 crianças.

Localizada em um endereço sigiloso (apenas a rede de proteção tem conhecimento), a casa dispõe de quatro quartos, 20 camas e dois banheiros coletivos. Além disso, há segurança 24 horas por dia, sete dias por semana, para garantir a integridade de quem está lá. Como é ligada à Secretaria de Políticas para a Mulher, os encaminhamentos para acolhimento são feitos pela pasta. Após triagem, se constatado o risco iminente à vida, o acolhimento é imediato.

As mulheres que precisam sair de sua residência por questão de segurança, sozinhas ou com os filhos, e que não têm para onde ir, recebem acolhimento integral e contam com acompanhamento psicológico, de assistência social e jurídico; recebem quatro refeições por dia; e podem manter a rotina diária que tinham em suas casas.

Uma equipe de profissionais do município prepara as refeições, mas as acolhidas são responsáveis pela manutenção e limpeza do local, bem como a organização dos quartos e outros espaços de convivência. “É um acolhimento coletivo que tem algumas regras a serem seguidas, mas que procura manter a vida o mais comum possível, como era antes de chegarem à casa”, detalha a coordenadora da Casa de Apoio, Jacinta da Rosa Antunes.

Embora a Casa de Apoio não seja uma morada definitiva, não há período determinado para que a mulher e seus filhos acolhidos permaneçam por lá. O amparo dura o tempo que for necessário, até que cesse a situação de risco ou até que o agressor saia da residência da família. “Não podemos estipular o período de permanência, porque cada situação é única e o tempo pode variar. Já acolhemos famílias que ficaram apenas dois ou três dias, e outras que passaram meses conosco”, explica.

 

Serviço sigiloso e ético

 

Se num passado bem recente muitas mulheres vítimas de violência doméstica não pediam socorro porque não tinham a quem recorrer, agora elas têm até mesmo onde pedir abrigo. Jacinta ressalta que o serviço oferecido pela casa é muito importante, extremamente sigiloso e ético. Para ela, quando um gestor público se sensibiliza com a causa e oferece suporte para que essas mulheres tenham a quem recorrer, às vítimas sentem-se confiantes, pois sabem que alguém vai ouvir suas histórias e acreditará nelas.

“É um serviço importante em vários sentidos, não só no social. A violência contra a mulher está instalada em todas as faixas etárias e em todas as classes sociais, independentemente de ser uma família humilde ou não. Uma mulher vítima de violência doméstica precisa de apoio para se sentir segura e enfrentar a situação. Denunciar, pedir ajuda e até mesmo sair de casa, são  passos muito difíceis,” completa.

CHEGOU A HORA DE TODOS ‘METEREM A COLHER’

A violência doméstica, especialmente contra a mulher, é um problema cultural incrustado na sociedade brasileira. Em 2012, quando o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais divulgaram uma atualização do Mapa da Violência daquele ano, Lages teve, pela primeira vez, consciência da gravidade deste problema por aqui: o município ocupava o primeiro lugar no ranking estadual em homicídios de mulheres e o 17º no país.

Apesar da alarmante e vergonhosa estatística, somente cinco anos mais tarde o governo municipal decidiu olhar com mais atenção para este assunto. Em 2017, Lages tornou-se a primeira cidade de Santa Catarina a criar uma secretaria exclusiva para atender às mulheres vítimas de violência doméstica.

A pasta tem sido peça fundamental na articulação da rede de proteção à mulher montada em Lages, pois é a porta de entrada para que inúmeras vítimas possam enfrentar situações de violência. A secretaria recebe as vítimas e tem sua própria política de atendimento. Porém, quando necessário, agiliza encaminhamentos a outras áreas como Assistência Social e atendimento em saúde, por exemplo.

As mulheres que chegam até a secretaria podem receber atendimento único, mas também podem ter acompanhamento periódico, que acontece por tempo indeterminado e depende das condições de cada caso em específico. Desde a abertura, em março de 2017 até julho de 2019, a Secretaria de Políticas para Mulher já havia feito o atendimento preliminar de 495 mulheres e seus familiares, e o acompanhamento de 303 casos.

Sabe aquele chavão antigo, que diz que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”? Pois saiba que ele é tão antigo, que está ficando no passado e a abertura de uma secretaria específica para cuidar de assuntos relacionados à violência doméstica é uma forma de “meter a colher” e contribuir para a erradicação deste problema cultural. “Nós vamos, sim, meter a colher em relacionamentos abusivos e mostrar para as nossas mulheres que elas não estão sozinhas. Hoje, com a secretaria e essa rede de apoio, as lageanas têm a quem recorrer e não precisam mais passar sozinhas por tudo isso”, comenta a diretora de Articulação de Políticas Públicas da secretaria, Bernadete Casa Liston.

LEI MARIA DA PENHA

MAIS DE 700 AMEAÇAS A MULHERES EM 2017, EM LAGES

A Lei Maria da Penha é o principal mecanismo de proteção às vítimas de violência doméstica e de punição aos agressores. Tem o propósito de coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sancionada em 2006, é uma importante ferramenta para o combate à violência contra a mulher. Para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a Lei fez diminuir o número de feminicídios.

Em Lages, o trabalho realizado por diversas instituições tem possibilitado um bom atendimento às vítimas. Esse trabalho, porém, não é algo extraordinário, é o cumprimento da lei, no que diz respeito às medidas integradas de prevenção, que preveem a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação.

Em 2017, mais de 221 mil mulheres no Brasil procuraram delegacias de polícia para registrar episódios de agressão, como lesão corporal dolosa, em decorrência de violência doméstica. Este número, segundo o Atlas da Violência divulgado em 2019, pode estar subestimado porque muitas vítimas têm medo ou vergonha de denunciar. Em Lages, no mesmo ano, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, que utilizou informações da Polícia Civil, foram 760 registros de ameaça e 362 casos de lesão corporal contra mulheres. Na comparação com 2018, os números reduziram. Foram 568 ameaças e 225 casos de lesão corporal. Em 2019, só há dados de procedimentos policiais de violência doméstica, os números foram atualizados em 22 de março, até essa data foram instaurados 25 inquéritos de ameaças e 15 de lesões corporais e de inquéritos remetidos, sendo 12 de ameaças e sete de lesão corporal dolosa.

“Aqui em Lages, estamos tentando fazer, não digo um trabalho diferenciado, mas o que a própria lei sugere. O Judiciário não trabalha sozinho dentro dessa questão do enfrentamento, trabalhamos em rede. A ideia é, também, que o Judiciário consiga enxergar as próprias deficiências, as possibilidades de melhoria na questão do atendimento”, explica o juiz responsável pela 2ª Vara Criminal, Alexandre Takashima. Ele observa que antes da Lei Maria da Penha os estudos de caso das mulheres eram muito fragmentados. Cada instituição tinha a sua informação em relação ao caso e ninguém trocava informações. “Muitas vezes, estávamos fazendo alguns trabalhos repetitivos, fazendo aquela mulher repetir várias vezes a mesma história, quando a gente poderia trabalhar em conjunto, a partir de um primeiro contato, colocá-la nesse fluxo de atendimento”, afirma.

Mas a lei, em sua totalidade, ainda requer algumas ações por parte do poder público, pois é indicada ‘à promoção de estudos e pesquisa, estatística e outras informações relevantes, com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes às causas, às consequências e à frequência da violência doméstica, e familiar contra a mulher, para a sistematização de dados a serem unificados nacionalmente e à avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas’. No Brasil, faltam informações oficiais e sistematizadas sobre as mortes de mulheres vítimas de feminicídio, por exemplo.

Em 2018, o então presidente Michel Temer, por meio de um decreto, instituiu o Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres e o Plano Nacional de Combate à Violência Doméstica com o objetivo de “ampliar e fortalecer a formulação e a execução de políticas públicas de direitos das mulheres, de enfrentamento a todos os tipos de violência e da inclusão das mulheres nos processos de desenvolvimento social, econômico, político e cultural do País”. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio do Serviço de Informações ao Cidadão, informou, a pedido da reportagem, sobre a implementação do Sistema, que “esta Secretaria Nacional está se estruturando para atendimento ao que dispõe o decreto acima referido”. Foi protocolado um recurso de primeira instância questionando quando será implantado e como será o acesso a esses dados. E se é de interesse do governo colocar em prática. Em resposta a pasta informou que “a implantação do Sistema Nacional de Políticas para as Mulheres e do Plano Nacional de Combate à Violência Doméstica estão em processo de planejamento por parte desta secretaria. Por fim, informo que é de interesse desta secretaria a continuidade de sistemas, planos, programas e projetos que contemplem a promoção e defesa dos Direitos da Mulher.”

Em agosto foi assinado Pacto pela Implementação de Políticas Públicas de Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres, que envolve diversos poderes federais, organizado pelo Ministério da Justiça, e tem como objetivo a atuação coordenada e integrada para a realização, compartilhamento e sincronização de ações voltadas à prevenção e ao combate à violência contra as mulheres.

"Em Lages, estamos tentando fazer, não digo um trabalho diferenciado, mas o que a própria lei sugere."
Alexandre Takashima
Juiz na 2ª Vara Criminal de Lages

Mestranda de Lages quer avaliar efetividade das medidas protetivas

No âmbito da proteção às vítimas de violência doméstica, a medida protetiva é um dispositivo da Lei Maria da Penha que visa a assegurar que os agressores não se aproximem das vítimas com o intuito de cometer novas agressões. O cumprimento das ordens judiciais para entrega das medidas protetivas é feita por oficiais de justiça.

Atuando nessa profissão há oito anos, Carla Fornari Colpani sempre ficou intrigada sobre qual a efetividade das medidas protetivas e se as vítimas sentem-se seguras com a existência desta restrição judicial.

Pensando nisso, quando ingressou no mestrado profissional em Direito, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no início de 2019, ela apresentou um projeto para fazer um estudo de caso que visa a analisar a forma de cumprimento deste dispositivo legal na Comarca de Lages, bem como analisar as implicações que isso traz para a vítima.

“O estudo surgiu de uma inquietação pessoal. Eu cumpro a ordem do juiz ao entregar a medida protetiva, mas quero entender a opinião da vítima sobre a efetividade. Saber se quando eu saio de sua casa ela sente-se protegida do agressor. Quando o servidor chega para entregar o documento, a violência tá acontecendo, e isso pode ser um gatilho para mais agressão,” analisa.

Na pesquisa, Carla aplicará um questionário às entrevistadas voluntárias (todas mulheres que receberam medidas protetivas entre os anos de 2017 e 2018) para traçar um perfil – levantando idade, raça, grau de instrução; quanto tempo durou a relação abusiva; e, principalmente, dar voz às vítimas, pedindo para que relatem suas percepções sobre a medida protetiva.

 

Criação de um protocolo

 

Após a conclusão do estudo e defesa de banca do mestrado, Carla pretende propor a criação de um protocolo para o cumprimento da ordem judicial. Isso porque, segundo ela, atualmente não existem orientações padronizadas para que os oficiais de justiça cumpram-nas.

Ela explica que, quando um juiz emite uma medida protetiva, o oficial tem até 24 horas para entregá-lo. “Penso que algumas regras precisam ser obedecidas por todos, para que haja um padrão para assegurar que a vítima seja efetivamente protegida,” diz.

Segundo ela, o protocolo seria importante para determinar, também, qual tipo de ordem judicial deve ter prioridade. “Nos plantões, a gente entrega alvarás de soltura e medidas protetivas, precisamos retirar criança de locais inseguros, dentre outras atividades. São várias coisas urgentes e diferentes, mas não existe um protocolo de prioridades. Definir o que será atendido primeiro, parte de uma questão ética e particular de cada servidor,” explica.

Este estudo de caso é o único que aborda a questão do cumprimento de medidas protetivas em desenvolvimento, atualmente, pelo Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos (Lilith) da UFSC. O Lilith é um grupo de pesquisas certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que atua dentro da universidade.

Falta investimento em pesquisa

Em Lages, não há nenhum trabalho de pesquisa e estudo das estatísticas, apenas os números divulgados pelos órgãos oficiais. Entretanto, o grupo de pesquisa Gênero Educação e Cidadania na América Latina (Gecal), ligado à Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), participa de uma extensa pesquisa internacional, que tem Lages no contexto, o Projeto de pesquisa: Estudos da judicialização da ‘violência de gênero’ e difusão de práticas alternativas de justiça numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina. O estudo envolve pesquisadores em cinco diferentes cidades brasileiras, Florianópolis/SC, Lages/SC, Uruguaiana/RS, Juiz de Fora/MG e Natal/RN e em outras quatro cidades argentinas, La Plata, Florencio Varela, e Orán e Tartagal. O objetivo do estudo é mapear e descrever mecanismos e práticas de promoção de justiça e de reparação moral em casos de “violência de gênero”. O estudo permitirá aprofundar conhecimentos sobre práticas e promoção de justiça; propor diretrizes e alternativas ao campo das políticas públicas voltadas a essa área; e difundir debates sobre a “violência de gênero”, a judicialização e as práticas alternativas ou autocompositivas. 

No que se refere a Lages, a coordenadora do Gecal, Mareli Graupe, afirma que não há parcerias formalizadas com as instituições e nenhum recurso financeiro para realização de pesquisas sobre a violência contra as mulheres. “Até 2015, tínhamos de dois a três projetos com recursos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para realização de pesquisas sobre o enfrentamento de violência contra mulheres, e agora não temos, nem possibilidades”, explica. O grupo mantém uma bolsista voluntária que está trabalhando a coleta de dados locais. “Boas políticas públicas e boa legislação em relação ao tema, nós temos no Brasil, o que não temos é uma infraestrutura, uma possibilidade de colocar em prática muitas coisas que até constam na Lei Maria da Penha”, comenta.

Deputada promove seminários no Estado

Em 2017, a bancada feminina da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, por meio da deputada Luciane Carminatti (PT), realizou uma série de seminários regionais para discutir Violência Doméstica Contra a Mulher nos municípios catarinenses. Este ano o objetivo é repetir os encontros e abordar a questão da autonomia e renda das mulheres. “Vamos discutir como as mulheres que não têm renda podem se organizar, individualmente ou coletivamente, temos muitas experiências no Estado e vamos levar também de autogestão e de gestão coletiva, agregando aqui um outro aspecto”. 

Segundo Carminatti, a avaliação de 2017 foi positiva, porque a discussão saiu da capital e foi para o interior. “Porque é em Florianópolis que se concentra, normalmente, o debate em torno da violência doméstica.”

Os seminários possibilitaram o debate em diferentes regiões e depois se concentraram em um grande evento na Assembléia Legislativa. Alguns seminários com participação recorde, como Chapecó, que reuniu cerca de 500 pessoas. Ela destacou algumas experiências desenvolvidas no Estado, como o Grupo de Pesquisa Gênero e Cidadania (Gecal), da Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), em Lages. “É uma experiência linda que acontece na Uniplac, com discussões mais aprofundadas, muito séria, também incluindo a população LGBT”.

Denúncias à Promotoria são 100% de lageanas

Mais da metade do casos que chegam até a 10ª Promotoria Criminal, em Lages, é de violência doméstica. Perto de 100% dessas denúncias são de lageanas. A Comarca atende também São José do Cerrito, Painel e Bocaina, mas são raras as situações que envolvem mulheres desses municípios. “No interior é bem mais difícil [denúncia], o que chega são casos bem pontuais e conhecidos”, afirma a promotora Mônica Lerch Lunardi. 

A 10º Promotoria está entre as que têm maior volume de inquéritos policiais e de processos. Segundo Mônica, a demanda é muito grande e a maioria das denúncias são por lesão corporal. Raros são os casos em que foi a primeira vez que a mulher sofreu a agressão. “Quando a mulher denuncia, muitas vezes, já há situação de esgotamento mental, físico, psicológico e que ela quer romper com aquela relação, e como não consegue sozinha e pede ajuda da polícia, ao sistema de Justiça”, explica a promotora. 

A violência doméstica abrange todas as classes sociais. A promotora, entretanto, acredita que a cultura da violência é mais disseminada entre as empobrecidas. “A mulher vive num ciclo que ela não consegue sair, porque não trabalha e é dependente do marido, mais filhos para criar e se vê presa nessa relação,” observa. Segundo Mônica, uma mulher que tem mais condições financeiras consegue, mais facilmente, romper essa violência. “Não quer dizer que não aconteça (em outras classes sociais), já tivemos casos de pessoas que pensamos “como ela deixou”, mas a mulher, muitas vezes, não se percebe num ciclo de violência, mesmo a mais instruída; não percebe que está em um relacionamento abusivo, outras pessoas têm que dizer para se dar conta,” relata.

Raros são os casos em que foi a primeira vez que a mulher sofreu a agressão

Medida protetiva

Para proteger as mulheres de ameaças e agressões, especialmente de ex-companheiros, são expedidas medidas cautelares que tratam do afastamento, proibição de contato e de aproximação. Segundo o juiz, Alexandre Takaschima, são aqueles casos em que é o primeiro fato, não são vários boletins de ocorrência e o autor comprova que vai se afastar. Casos de violência muito graves é mantida a prisão.

Quando a vítima faz o pedido de Medida Protetiva, a delegacia tem 48 horas para encaminhar ao Judiciário. “Em casos graves, o juiz decide sem consultar o Ministério Público, e abre, posteriormente, vista para termos ciência de que foi concedida,” explica a promotora Mônica Lerch Lunardi. A medida protetiva está prevista na Maria da Penha.

Em Lages, a Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (Dpcami), especializada ao atendimento às mulheres vítimas de violência, faz, diariamente, pedidos de Medidas Protetivas. Na Dpcami, até 18 de julho de 2019, foram 362 pedidos de medida protetiva e, no ano passado, mais de 500 encaminhamentos. De janeiro a 4 junho de 2019 foram expedidas, pelo juiz Takaschima, 289 medidas protetivas de urgência e, em todo o ano de 2018, foram 598. 

A Polícia Militar, por meio do programa Rede Catarina, fiscaliza as medidas protetivas de urgência e atende as mulheres em situação de violência doméstica. A dupla de policiais, sempre composta por um homem e uma mulher, faz visitas na residência da vítimas.  Desde a implantação, em Lages, em fevereiro de 2018, foram realizadas 1.019 visitas. Em 2019, foram efetuadas 476 visitas preventivas e 66 agressores acompanhados. Em 29 de julho, eram 75 vítimas atendidas pela Rede. Após visitas realizadas, 226 vítimas não necessitam mais de acompanhamento.

Para o delegado da Dpcami de Lages, Renan Scandolara, analisando os números, pode haver a falsa impressão de que aumentou o número de casos de violência doméstica, mas, possivelmente, o que aconteceu foi um aumento da denúncia, porque ainda há um número de crimes que não chega ao conhecimento das autoridades, são crimes clandestinos. “E, às vezes, a vítima sofre alguma agressão, quatro ou cinco vezes antes de procurar ajuda”, observa.

Engajamento para informar

O delegado Renan está desde fevereiro atuando na Dpcami de Lages, e conta que desde as gestões passadas há um engajamento no sentido de informar às mulheres a forma como proceder nos casos de violência. Sobre a legislação em defesa da mulher, ele lembra a história da Maria da Penha que deu origem à Lei (2006). O marido demorou 19 anos para ser condenado e ficou dois anos preso. “A lei somente foi criada após o Brasil receber uma condenação internacional da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Só em 2006 foi tomada uma providência mais concreta para combater esse tipo de situação, que é institucional e cultural,” afirma. Outra lei importante é a do feminicídio, de 2015, que colocou qualificadoras no crime de homicídio. “Eu acredito na questão linguística, acho que é um termo que é necessário, justamente para fazer essa distinção entre os crimes e chamar a atenção.” 

 

Projeto Polícia Civil por Elas

 

Dentro da corporação, está sendo implantado, desde 2018, o programa Polícia Civil por Elas, que inclui ações voltadas para a prevenção da violência contra mulheres. Trata-se de um programa estadual e as ações acontecem vinculadas às Dpcamis e às delegacias de comarca que contam com psicólogos policiais em seu quadro. Em Lages, o programa já está em andamento. 

A psicóloga policial civil em Lages, Verônica Bem, explica que as ações do programa acontecem em quatro eixos: Grupos e palestras com adolescentes em idade escolar; Grupos reflexivos com homens que praticaram violência contra mulheres; Grupos reflexivos com mulheres que sofreram violência; e Atividades de formação e cuidado com policiais civis que atendem a situações de violência. As ações com homens se justificam pelo objetivo de promover a mudança, desde uma perspectiva reflexiva como alternativa ao viés puramente punitivista. “O machismo é um problema no mundo inteiro, especialmente no Brasil e na América Latina, percebi que aqui (Lages), é muito forte, e não implica apenas na violência contra a mulher nas relações conjugais, mas violência na rua, contra crianças e a violência sexual contra meninas e adolescentes”, comenta a psicóloga.

Aplicativo será ferramenta para coibir aproximação do agressor

Até o fim de julho, Santa Catarina havia registrado 31 femínicídios, somente neste ano. Todas as mortes causadas pelos companheiros das vítimas, que viviam, em sua maioria, em situação de violência doméstica. Em muitos dos casos, as mulheres haviam registrado boletim de ocorrência contra os parceiros e tinham medidas protetivas, o que, claramente, não foi suficiente para proteger sua integridade.

Pensando na efetividade das medidas protetivas, uma empresa de Joinville desenvolveu um aplicativo que é capaz de avisar quando o agressor está se aproximando, fazendo com que a vítima tenha tempo de buscar proteção ou até mesmo se esconder. Este aplicativo ainda não está disponível no mercado, mas sua utilização poderá ser obrigatória em breve.

 

O Security Care

 

Programa Mulher Mais Segura consiste em um dispositivo que emite um alerta sonoro quando o agressor chega a uma determinada distância da vítima (a distância é definida pela medida protetiva). Este alarme dispara no celular da vítima, em dispositivos móveis de pessoas da sua confiança (seus protetores) e também emite um alerta para equipes de segurança pública (polícia, guarda municipal, etc.), para que esta possa tomar atitudes ante o descumprimento da protetiva.

De acordo com o presidente da empresa Sistema Security Care, Edivaldo da Veiga, o aplicativo deve ser instalado nos dispositivos móveis da vítima e do agressor no momento em que a medida protetiva é recebida. “Com isso feito, o agressor passa a ser monitorado em um painel de controle e é possível saber quando ele excede o limite da protetiva e se aproxima da agredida. Quando o agressor se aproximar da vítima, em qualquer direção, ela recebe um alerta sonoro específico, bem alto, para saber que ele está perto. Ela também recebe a localização dele em tempo real, podendo se proteger, se defender ou fugir”, explica.

Para evitar que o aplicativo seja desativado ou não funcione por falta de internet, várias medidas foram tomadas. A primeira é que o Security Care foi desenvolvido para funcionar por satélite e, por isso, não precisa estar o tempo todo conectado à internet.

Segundo Veiga, caso o agressor desligue o localizador ou o próprio dispositivo móvel, a vítima e a rede de proteção também recebem um alerta. “Por meio de uma lei que está em tramitação no Congresso Nacional, o agressor não poderá deixar acabar a bateria nunca, nem desligar o localizador ou o aparelho. Se ofizer alguma destas coisas, estará ferindo a medida protetiva”, comenta.

Outro dispositivo de segurança é que, 20 vezes ao dia, o agressor recebe uma mensagem e precisa encaminhar uma selfie de segurança, que consiste em uma foto sua, tirada no momento em que ele recebeu a mensagem. “Quando recebe a notificação, ele tem dois minutos para fazer a selfie. Se não tirar a foto comprovando que está com o aparelho, a polícia, os protetores e a vítima vão ser avisados de que o agressor está mal intencionado e que devem se proteger,” completa.

 

Aplicação depende de parceria e legislação

 

A empresa já fez todos os testes e a homologação, e tem a patente do app. O próximo passo é fechar parceria com os governos estaduais para que o aplicativo – que terá distribuição e utilização gratuitas – possa integrar um dispositivo de lei que obrigue a utilização.

A efetividade de aplicativos como o Security Care pode estar próxima. Isso porque, atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, o Projeto de Lei 10024/18, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM/SE). O PL altera a Lei Maria da Penha, incluindo o uso de dispositivo móvel de segurança para conferir maior efetividade às medidas protetivas de urgência.

De acordo com a assessoria de imprensa da deputada federal Carmen Zanotto (Cidadania), o Projeto de Lei foi aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família na forma de substitutivo apresentado pelo relator, deputado Célio Silveira (PSDB-GO). A proposta tramita em caráter conclusivo e ainda será analisada pelas comissões de Defesa dos Direitos da Mulher, de Constituição e Justiça, e de Cidadania.

Carmen explica que a proposta torna obrigatório o fornecimento às vítimas de violência doméstica e familiar, de um dispositivo móvel, aplicativo ou outro meio com conexão constante com unidade policial. Ao ser acionado, esse dispositivo envia alerta imediato à polícia em caso de ameaça ou agressão.

“Além disso, o texto aprovado permite, de forma expressa, que o juiz submeta o agressor a monitoramento eletrônico. Quando o agressor estiver submetido ao monitoramento, o dispositivo fornecido à vítima será dotado de recurso que permita saber se o autor da violência doméstica ultrapassou o limite mínimo de distância estabelecido em medida protetiva”, comenta.

“Agora, vamos trabalhar para que o texto não seja restritivo a esta ou àquela tecnologia. O legislador não pode inibir a evolução tecnológica, cabe a nós parlamentares dotar de instrumento legal sua utilização. Agregando startups às ações de segurança pública é possível produzir, em curto prazo, uma rede protetiva que agirá na diminuição da violência contra as mulheres”, completa.

FEMINICÍDIO

LEI QUALIFICA O CRIME E AUMENTA PENA

Em uma década, no Brasil, aumentou em 30,7% o número de homicídios de mulheres, segundo dados divulgados, em maio deste ano, no Atlas da Violência organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo aponta a “percepção de ter havido crescimento nos casos de feminicídio no país”. Segundo o Atlas, não se sabe, ao certo, se o aumento dos registros de feminicídios pelas polícias reflete, efetivamente, um aumento no número de casos, ou a diminuição da subnotificação, uma vez que a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) é relativamente nova, “de modo que pode haver processo de aprendizado em curso pelas autoridades judiciárias”.
Em 2017, ano base do estudo, foram cerca de 13 assassinatos por dia. De acordo com os dados, Santa Catarina é o terceiro estado com a menor taxa de homicídios femininos, 3,1, por 100 mil habitantes. Entretanto, o Estado não está em uma situação confortável, neste ano já foram registrados 32 casos de feminicídios (conferir na publicação).
Em Lages, em 2019, foram dois casos de feminicídio. O corpo de Andreia Aparecida dos Santos (43) foi encontrado em estado de decomposição, em uma casa abandonada, no Centro da cidade. O de Aline Santos Rosa, teria sido queimado na caldeira da sauna de um clube da cidade. “Ambos os casos estão em investigação, não podemos falar com certeza absoluta do que aconteceu, mas ao que tudo indica, o marido teria matado a esposa, e jogado ele [corpo] dentro da caldeira [da sauna] de um clube onde trabalhava, e dias depois, com a investigação em curso, tudo apontando para ele, teria morrido em um acidente de automóvel, supostamente provocado por ele,” relata Luciana Uller Marin, titular da 1ª Promotoria.
O feminicídio deixou de ser um homicídio simples e passou a ser qualificado em 2015, a Lei conceitua, como explica a promotora Luciana, “quando ficará caracterizada situação em razão do sexo feminino, dizendo que haverá essa condição quando o crime for praticado dentro do contexto de violência doméstica ou de menosprezo à condição de sexo feminino”. Desde essa data, todos os crimes praticados contra mulher dentro dessas circunstâncias passaram a ser um homicídio qualificado, o que significa que é um crime mais grave e que merece pena maior. A pena deixa de ser de seis a 20 anos, e passa, automaticamente, para 12 a 30 anos. “Podendo, dependendo do caso, incidindo outras qualificadoras que, via de regra, estão juntas, como por exemplo, motivo torpe, quando se verifica que o homicídio aconteceu em razão de um sentimento de posse, ou em razão de uma vingança, ou um motivo fútil, quando, eventualmente, é por uma provocação, briga boba do casal,” completa.
Para ela, a Lei é positiva, na medida em que trata de forma mais grave os crimes praticados contra a mulher em razão da sua condição, além de qualificar o homicídio praticado contra a mulher. “A Lei, por si só, não é resposta para nada, não é solução para nada, o quanto menos a gente pudesse utilizar dessa legislação, melhor, que as nossas relações não chegassem até a esse ponto, mas ela é importante também pelo seu caráter preventivo,” acredita.

Alesc fomenta debate para articular rede de apoio

Somente no primeiro semestre de 2019, mais de 30 feminicídios foram registrados no Estado. Este e outros dados alarmantes sobre violência doméstica despertaram olhar da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc). O órgão promoveu audiências públicas com o tema “Violência contra a Mulher e Feminicídio” em seis municípios. Lages recebeu a audiência no final de junho.
Nos 12 meses que antecederam a realização da audiência pública em Lages, cerca de cinco mil mulheres haviam feito denúncias contra seus companheiros por violência doméstica em todo o Estado. Para a deputada estadual propositora das audiências, Marlene Fengler (PSD), os altos números não são necessariamente um indício de que os casos estão aumentando. Ela acredita que o crescimento das denúncias é reflexo da ampliação do debate sobre o tema, seja em ambientes políticos, espaços públicos ou pelos meios de comunicação.
“São números muito altos, é um absurdo e a gente precisa fazer algo. Os feminicídios são apenas a ponta do iceberg, porque o feminicídio [relacionado à violência doméstica], normalmente, não acontece no dia em que as pessoas se conhecem. Ele é o final de uma relação. Antes disso, já aconteceram violência psicológica, física e de outros tipos, violência em vários níveis.”
As audiências públicas aconteceram em Joinville, Florianópolis, Blumenau, Lages, Chapecó e Tubarão. O foco foi ampliar o debate acerca do tema, dando margem para que os municípios e o Estado possam se mobilizar e criar redes de apoio às mulheres – a exemplo do que já acontece em Lages, único município de Santa Catarina que tem uma secretaria voltada para o atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica.
“Foram mais de 30 feminicídios em poucos meses em Santa Catarina. É um número inadmissível em um Estado como o nosso, que é desenvolvido econômica, cultural e socialmente,” pondera Fengler. Segundo ela, as audiências públicas têm o intuito de debater o tema e fomentar a criação de redes de apoio, e a que existe em Lages pode servir de modelo.
“Outros municípios precisam seguir o exemplo de Lages. É necessário institucionalizar uma rede de proteção que possa atender à demanda, desde a parte da educação, até no final, quando precisa prender um agressor. Tem que abranger todas as etapas, com a criação de um fluxo para que, quem precise de alguma forma, possa buscar apoio e sentir-se segura. Primeiro, é preciso que a mulher entenda que é vítima de violência, depois saiba quais são os seus direitos e a quem recorrer. Elas precisam saber que tem solução e que há vida além do relacionamento abusivo,” completa.

Tipos de violência

A Lei Maria da Penha prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher

VIOLÊNCIA FÍSICA

Entendida como qualquer conduta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher.

  • Espancamento
  • Atirar objetos, sacudir e apertar os braços
  • Estrangulamento ou sufocamento
  • Lesões com objetos cortantes ou perfurantes
  • Ferimentos causados por queimaduras ou armas de fogo
  • Tortura

VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA

É considerada qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima; prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher; ou vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.

  • Ameaças
  • Constrangimento
  • Humilhação
  • Manipulação
  • Isolamento (proibir de estudar e viajar ou de falar com amigos e parentes)
  • Vigilância constante
  • Perseguição insistente
  • Insultos
  • Chantagem
  • Exploração
  • Limitação do direito de ir e vir
  • Ridicularização
  • Tirar a liberdade de crença
  • Distorcer e omitir fatos para deixar a mulher em dúvida sobre a sua memória e sanidade (Gaslighting)
  •  

VIOLÊNCIA SEXUAL

Trata-se de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força.

  • Estupro
  • Obrigar a mulher a manter atos sexuais que causam desconforto ou repulsa
  • Impedir o uso de métodos contraceptivos ou forçar a mulher a abortar
  • Forçar matrimônio, gravidez ou prostituição por meio de coação, chantagem, suborno ou manipulação
  • Limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher

VIOLÊNCIA PATRIMONIAL

Entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

  • Controlar o dinheiro
  • Deixar de pagar pensão alimentícia
  • Destruição de documentos pessoais
  • Furto, extorsão ou dano
  • Estelionato
  • Privar de bens, valores ou recursos econômicos
  • Causar danos propositais a objetos da mulher ou dos quais ela goste
  •  

VIOLÊNCIA MORAL

É considerada qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

  • Acusar a mulher de traição
  • Emitir juízos morais sobre a conduta dela
  • Fazer críticas mentirosas
  • Expor a vida íntima
  • Rebaixar a mulher por meio de xingamentos que incidem sobre a sua índole
  • Desvalorizar a vítima pelo seu modo de vestir
  •  

Fonte: Instituto Maria da Penha

Brasil é o 5º colocado no ranking mundial de feminicídio

Em janeiro, a organização internacional Human Rights Watch divulgou relatório apontando que o Brasil enfrenta o que chama de “uma epidemia de violência doméstica”. O Brasil ocupa a posição incômoda de 5º lugar no ranking mundial de feminicídio. Na América Latina, estamos atrás só de El Salvador, Colômbia e Guatemala. “Em 2015, quando foi editada a lei que trouxe o feminicídio para o Código Penal, foi feito um levantamento dos últimos 30 anos, que indicou que, neste período, morreram, em razão de sua condição de mulher, cerca de 101 mil mulheres, uma média, de nove mulheres por dia, o que é bem alto”, analisa a promotora Luciana Uller. Ela comenta, ainda, que Lages é considerada uma das cidades, em Santa Catarina, com maior número de registros de violência contra a mulher. “Temos uma rede bem articulada, de certa forma, ao mesmo tempo que a mulher é vítima de uma cultura até certo ponto machista, também tem um certo amparo para realizar os registros, e isso aumenta nosso índice,” acredita. A promotora comenta que é importante que os familiares estejam atentos, que a própria rede de acolhimento esteja mobilizada e que a mulher saiba que pode procurar auxílio.

ESTUDO APONTA QUE AGRESSÕES COSTUMAM ACONTECER À NOITE

A relação entre a violência doméstica com as mortes de mulheres é apontada por autoridades e estudos sobre o tema. Em julho, o Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE-SC) divulgou relatório sobre a estimativa do custo econômico no Estado e as circunstâncias que permeiam o feminicídio íntimo traçando suas características. O estudo traz análises dos crimes cometidos entre 2011 e agosto de 2018. Foram 353, um a cada oito dias. A média de idade aproximada das vítimas era de 33 anos e 70% tinham menos de 40 anos. Já entre os autores dos crimes a média de idade era de cerca de 35 anos.
As mortes, assim como as agressões às mulheres, costumam acontecer à noite, e com maior incidência no final de semana. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a violência conjugal é responsável por 35% das mortes de mulheres no mundo, ou seja, é o feminicídio íntimo, termo usado para “caracterizar mortes não acidentais em âmbito familiar ocasionada por seu parceiro ou alguém do seu convívio familiar”. O trabalho do TCE-SC aponta que, se medidas forem adotadas, o feminicídio íntimo pode ser evitável.
Entre essas ações destacam-se, por exemplo, o fortalecimento da vigilância e prevenção à violência contra a mulher e acompanhamento dos agressores e vítimas de violência doméstica, algo que já é realizado em Lages, por meio da rede de atendimento, especialmente com a Secretaria da Mulher e a Rede Catarina da Polícia Militar. Outra medida sugerida é a aprovação, na Assembleia Legislativa (Alesc), do Projeto de Lei 065.7/2018, que propõe a prevenção da violência com divulgação de ações de proteção e acolhimento das vítimas. Prevê, ainda, a elaboração de convênios com entidades e uso de recursos estaduais alocados na saúde para prevenção da violência doméstica.

ENTREVISTA

Deputada Ada de Luca da Frente Parlamentar de Combate à Violência Contra a Mulher

Correio Lageano: Em que consiste a Frente Parlamentar de Combate à Violência Contra a Mulher, da qual a senhora é presidente?

 

Ada de Luca: A Frente Parlamentar de Combate à Violência Contra a Mulher é o espaço legal, no Parlamento, para o fortalecimento da pauta em defesa das mulheres vítimas de violência e, principalmente, para agir na prevenção. O que buscamos é unir esforços para obter resultados efetivos. Hoje, Santa Catarina é o segundo estado, proporcionalmente, em número de violência doméstica e estupros. Só no primeiro semestre de 2019, o número de feminicídios chegou a 28 no Estado. Não podemos ficar omissos!

 

A Frente lançou também o Pacto Por Elas, quais ações estão previstas?

 

O Pacto é a formalização de um compromisso de união dos poderes do Estado, sociedade civil organizada e segmentos empresariais, num acordo em defesa da mulher catarinense. O pacto foi firmado no lançamento da Frente Parlamentar de Combate à Violência Contra a Mulher, no mesmo momento em que foi apresentado o selo da campanha. O pacto vai contar com representantes de todos os poderes e segmentos da sociedade, que se reunirão mensalmente e apresentarão propostas de combate à violência. A primeira reunião está prevista para ocorrer em agosto, quando será apresentado um cronograma de ação, além de estar previsto um espaço virtual para divulgar esse trabalho.

 

Como essas duas medidas, a Frente e o Pacto, podem contribuir para a diminuição dos casos de violência doméstica e feminicídio em Santa Catarina?

 

Hoje, muitos segmentos governamentais e não-governamentais que fazem trabalhos importantes na busca por soluções para esta causa. O que acontece é que muitos desses setores não se conversam. Acaba havendo sobreposição. Ao unir esforços, estaremos alinhando as iniciativas e potencializando os resultados.

 

A maioria das cidades da Serra Catarinense não possuem delegacias especializadas no atendimento à mulher, essa é uma realidade de diversas cidades do Estado, são apenas 31. Há algum projeto, ou intenção de propor ao Executivo a criação de mais delegacias especializadas?

 

Como parlamentares não podemos propor projetos que oneram o Estado. Mas temos conversado com os poderes para conseguirmos ampliar esse número. A Polícia Civil também faz parte desse Pacto Por Elas e vamos, juntos, lutar para que as delegacias especializadas cheguem nos locais que mais necessitam.

 

Que projetos tramitam na Assembleia Legislativa com o propósito de diminuir a violência contra a mulher?

 

Apresentei projeto para coibir a violência dentro de estabelecimentos, onde a mulher sinaliza para o garçom e ele a acompanha até o seu veículo e em casos mais extremos chama a polícia. Tem projeto da deputada Paulinha (Ana Paula da Silva-PDT), protocolado na Assembleia Legislativa, para garantir vagas de emprego para mulheres vítimas de violência, quebrando o ciclo da dependência financeira. Como presidente da Comissão de Direitos Humanos, foram realizadas audiências públicas, a pedido da deputada Marlene Fengler, em todas as regiões do Estado para fazer um diagnóstico da violência contra a mulher. Nessas audiências a comunidade se manifestou mostrando quais as fragilidade e partir disso serão apresentadas novas propostas.

SECRETARIA É REFERÊNCIA PARA A MULHER

À Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher compete coordenar a implementação de ações e atividades voltadas para o combate à violência contra a mulher, e manter canais permanentes de relações com movimentos sociais de mulheres e outros seguimentos da sociedade civil, em articulação com o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, dentre outras atividades.
O órgão oferece serviço de referência especializado com atendimento psicossocial e jurídico para mulheres que sofrem as violências ligadas à Lei Maria da Penha (psicológica, moral, patrimonial, sexual e física).
A psicóloga da pasta, Danielle Angeli, explica que a secretaria é voltada para atendimento exclusivo dos casos de violência de gênero e doméstica. Contudo, quando é procurada por pessoas que passam por outro tipo de violência, a vítima, seus familiares e demais envolvidos são encaminhados para os serviços de referência ligados à situação.
“Há casos de agressões que são relacionadas à saúde mental, por exemplo, pois há muitas agressões entre homem e mulher que acontecem porque um deles sofre de algum transtorno mental. Estes casos são encaminhados para serviços de referência, ligados às secretarias de Saúde ou Assistência Social, dependendo de cada situação”, exemplifica Danielle.
Os casos de violência contra idosos e crianças, por exemplo, que têm estatutos próprios, também recebem encaminhamento para os conselhos de cada área, pois assim, recebem atendimento específico para o caso, com equipes especializadas.
“Nossa secretaria atende, exclusivamente, situações de violência de gênero. Se a questão familiar for acentuada, se o pano de fundo da situação de violação de direitos é a violência doméstica, então, os casos vêm para nós e a gente acompanha a família como um todo. Mas quando se trata de outras violências, a gente faz o atendimento preliminar e dá os encaminhamentos de acordo com a necessidade para que os envolvidos recebam a atenção adequada e especializada”, completa a diretora de Articulação de Políticas Públicas da Secretaria, Bernadete Casa Liston.

Lages tem altos índices de violência contra a mulher

Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, em 2015, divulgou que 18% das mulheres entrevistadas afirmaram já ter sido vítimas de algum tipo de violência doméstica, seja ela, física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial. E com o objetivo de atender as mulheres lageanas, vítimas de violência, em Lages, foi criada, em 2017, a Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher. O município tem altos índices de violência contra a mulher. A secretária Marli Nasciff afirma que a pasta se mantém apenas com recursos municipais, e comenta a necessidade de participação do Governo do Estado para que outras sejam criadas por Santa Catarina.
Neste ano, em Lages, foi sancionada a Lei Complementar 554, que proíbe a nomeação para cargos comissionados na Prefeitura, de pessoas que tenham sido condenadas pela Lei Maria da Penha. Essa é mais uma ação que visa diminuir a violência contra a mulher no município. A proibição de contratação é para os casos em que há condenação judicial e sem possibilidade de recurso. Ou seja, o simples registro de boletim de ocorrências não é impeditivo para a contratação.
Marli comenta que em algumas situações teve de atender vítimas de outras cidades da região. “O último caso que chegou disse que não poderíamos atender, mas vi a mulher e os dois filhos, mudei de ideia, e ela foi para o abrigo até conseguir a medida protetiva, não dá coragem de dizer, volta para a sua casa e se entenda, e leve os teus filhos. Isso para você ver a necessidade que tem de atendimentos”. A secretária lembra que há também muitas idosas que estão sendo agredidas, a maioria sofrendo violência de filhos e netos, geralmente, por questões financeiras.
As equipes de trabalho, que contam com psicóloga e assistente social, se concentram no atendimento à vítima, mas também chamam os agressores para conversar. “Procuramos conversar com esses homens para encaminhá-los de alguma maneira, seja para tratamento ou conversas para que entendam o que causaram não só às companheiras, mas também aos filhos. Porque o fato de que a mulher é a vítima, não resta dúvida, mas os filhos também o são, pois vivem em um ambiente de agressão, onde aprendem a agredir.”

Violência contra a mulher é preocupação de Conselhos

O Conselho Estadual dos Direitos Direitos Humanos criou, em maio deste ano, uma comissão especial de enfrentamento à violência contra a mulher. Segundo a advogada Erli Camargo, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, não existe em nenhum lugar do Brasil esse tipo de ação dentro dos Conselhos Estaduais. Entre as ações articuladas em Lages, está a de levar para todas as Câmaras de Vereadores do Estado a discussão sobre o tema. “Em Lages, a gente sempre está em sintonia com as diretrizes trabalhadas no estado”, afirma ela, que também integra o Fórum Estadual de Enfrentamento à Violência contra a Mulher, representando a Marcha Mundial das Mulheres e a direção do Conselho Estadual dos Direitos Humanos.

Perfil das vítimas

– Mulheres de todas as classes sociais e idades
– Maioria é responsável pela manutenção financeira da família e da casa
– Relações duradouras com dependência afetiva
– Sentimento de culpa devido à cobrança familiar e social pelo papel da mulher/esposa

Perfil do agressor

– Homens de todas as classes sociais e idades
– Machismo latente
– Ciúme excessivo
– Sentimento de posse sobre a companheira
– Maioria é superprotegido pelos pais (especialmente a mãe), que se responsabilizam por suas falhas e atitudes agressivas
– Praticam alienação parental para afetar a vítima

Ouça ao 1º podcast do CL, sobre os bastidores da reportagem

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