Geral
O glúten encarado como veneno pelo organismo
Imagina entrar em um supermercado e ter que ler os rótulos de todos os produtos para checar se têm glúten ou não. Ou ser convidado para ir a um restaurante e precisar levar marmita.
Ao viajar, levar panelas e alimentos para conseguir se alimentar sem passar mal. Assim é a rotina de uma pessoa celíaca, uma doença autoimune genética que desencadeia outras enfermidades se o indivíduo continuar comendo glúten.
Encontrada no trigo, cevada, aveia, malte e centeio, o glúten é uma proteína presente em vários tipos de alimentos, bebidas, cosméticos e até em remédios. Por isso, pessoas com doença celíaca, precisam estar atentas aos rótulos do que consomem.
Mais do que isso, não podem ingerir nada preparado em locais com utensílios que tiveram contato com glúten, o que se chama de contaminação cruzada. Caso não prestem atenção na contaminação cruzada, o celíaco pode ter sintomas.
Porém, mesmo que não sinta nada ao se contaminar, o sistema autoimune de um celíaco contaminado com frequência, pode provocar várias doenças, como câncer, hipotireoidismo, anemia, esterilidade, entre outros.
O diagnóstico da celíaca é difícil porque a doença provoca outras, se a pessoa não sabe que não pode comer glúten e continua ingerindo o composto de proteínas. Por exemplo, um celíaco com depressão, ao procurar um psiquiatra, faz o tratamento, mas não melhora, porque o gatilho da doença é o glúten. Ao eliminar a proteína, a depressão desaparece.
O gastroenterologista, nutrólogo, especialista em doença celíaca e doenças intestinais funcionais, Fernando Valério, explica que o glúten destrói as vilosidades do intestino delgado do celíaco e, com isso, provoca várias doenças e sintomas.
Alguns exemplos, são: digestivos (diarreia, intestino preso, gases, distensão abdominal), nutricionais (deficiência de nutrientes, anemia), psicológicos (depressão, ansiedade, irritabilidade), neurológicos (enxaqueca, epilepsia), dermatológicos (vitiligo, urticária, psoríase, queda de cabelo, problemas nas unhas, dermatite herpetiforme), musculares (artrite, fadiga, tendinite, fibromialgia), entre outros, como hepatite, osteoporose, fadiga e doenças cardiológicas. “A doença celíaca afeta o corpo inteiro. É preciso deixar claro, que a maioria dos pacientes não apresentam o quadro típico, como magreza e diarreia. Grande parte possui outras doenças autoimunes e anemia.”
A doença não é rara
Os levantamentos sobre a doença são alarmantes. No mundo, 1% da população é celíaca, ela não é considerada uma doença rara, mas sim pouco diagnosticada, pois a cada 100 celíacos, apenas 15 sabem que possuem a doença. E, a cada 100 pessoas, uma celíaca.
O Brasil tem população de cerca de 210 milhões de pessoas, sendo que 2 milhões delas são celíacos (incluindo os que não sabem). Para uma doença ser rara é preciso ter um caso, a cada 2 mil pessoas, segundo o médico.
“A incidência de doenças autoimunes em pessoas é de 3%, celíacos sem diagnóstico possuem uma chance de 30%. A mortalidade de celíacos que não seguem a vida sem glúten é cinco vezes maior que a população geral.”
Diagnóstico despertou interesse
O médico, que é referência nacional quando o assunto é doença celíaca, bombardeia suas redes sociais com o assunto e é muito conhecido pelos celíacos. Ele se interessou pela doença, depois que foi diagnosticado com a Síndrome do Intestino Irritável (SIL) e descobriu que 5% das pessoas com SIL são celíacas.
“Comecei a conviver com celíacos e ver como sofrem preconceito, com o preço dos produtos, com os sintomas, com a falta de uma boa legislação… Me motivo a conscientizar sobre o assunto, tenho muitos pacientes celíacos e quero que as pessoas entendam o que é a doença celíaca. Há muitos ainda sem diagnóstico.”
Sem cura, mas com controle
Não existe cura ou tratamento para a doença celíaca, a não ser nunca mais ingerir glúten. Há pesquisas em andamento, outras encerraram, como uma vacina, que não teve efeito. “Há um medicamento em teste em humanos, que tratará a permeabilidade intestinal, ou seja, fará com que o glúten não seja reconhecido como um inimigo no organismo. Porém, só ajudará nas vezes que o celíaco sofrer contaminação cruzada, ou seja, quando ingere algo que possui traços de glúten”, revela o médico.
Há outro estudo com uma partícula nanobiodegradável, que terá uma parte do glúten, a gliadina, dentro dela. Aos poucos, ela vai liberar a gliadina, para que o organismo celíaco se acostume com a proteína. “Mas ainda é um estudo precoce, porém, se der certo, será revolucionário.”
O especialista frisa que é preciso, depois do diagnóstico, a família do celíaco fazer os exames para detectar a doença. Afinal, a celíaca é genética e como o médico diz, é um camaleão, possui diversas formas de se manifestar. Estima-se que causa 80 doenças e 300 sintomas. “Mundialmente, a média é que demore de cinco a 10 anos para ser diagnosticado.”
Diagnóstico da família foi encarado como benção
Tania Bentler Nogueira Rocha viu sua vida, dos seus filhos e do marido mudar, aos 51 anos. A vida toda ela sofreu com sintomas e doenças, mas nenhum médico descobriu que ela era celíaca. Sofreu três abortos, tinha uma queda brusca de cabelo, tinha cansaço extremo, problemas na circulação, pernas inchadas, falhas de memória, falta de equilíbrio e uma grave esteatose hepática. “Eu tratava os sintomas e não sabia o que causava. Quando parei de comer glúten, desinchei, emagreci 18 quilos, me sinto mais jovem, mesmo mais velha. Me obrigo a comer corretamente, a celíaca trouxe minha vida de volta, eu estava de cama, quase morta.”
Depois de pesquisar sobre glúten e seus malefícios, ela tirou o produto de sua casa, seus três filhos e marido também pararam de comer para não contaminar o ambiente. E depois que comeram glúten fora de casa, se sentiram muito mal. “Meu filho tinha uma alergia horrível no olho, quase ficou cego e, sem glúten, isso sumiu. Minha filha mais velha tinha ansiedade e depressão, tomava medicamento e não precisou mais. Meu marido, quando come glúten, sofre com coceira e manchas na pele. Minha filha mais nova tem dor de cabeça, enjoo, fica irritada e com barriga inchada…ou seja, essa proteína não faz bem para ninguém.”
Ela encara as dificuldades em viajar e socializar como vitimismo de celíacos que não possuem uma visão mais otimista da vida. “É só se adequar, já viajei para vários locais, levei comidas congeladas, panelas, fogareiro e não tive problemas. O povo fitness carrega marmita para todo lugar por ser mais saudável, nós temos que carregar para sobreviver e isso não deve ser um problema. Afinal, nem precisamos tomar remédio, é só viver sem glúten e ser feliz.”
‘Marmitar’ para evitar isolamento social
Psicóloga há 30 anos, Sonia Regina Ferreira Serrano Vieira descobriu, há oito anos, que é celíaca e alérgica ao trigo. Com os diagnósticos, vieram também pacientes novos, que precisam de uma profissional que entenda as mudanças necessárias para viver bem sem glúten.
Ela explica para os celíacos que é preciso desapegar das emoções com enfoque alimentar, reunir-se com as pessoas e não se importar com o que elas comem, mas aprender a dar importância em estar com quem interessa de verdade.
“Fazer seus alimentos se ainda não puder consumir os industrializados sem glúten é também muito importante. Levar sua marmita nos eventos para comer com segurança.”
A especialista explica que há quatro fases depois do diagnóstico da doença celíaca. O primeiro sentimento é o alívio, pois a pessoa deixa de ficar doente por causa do glúten; a segunda etapa é a do desânimo ao procurar formas prontas e seguras de se alimentar e não encontrar tão facilmente.
A terceira fase é a estagnação, quando a pessoa precisa recriar seus passeios e sua vida e não sentir o diagnóstico como algo ruim. O desamparo é a quarta e última etapa, quando o celíaco percebe que vive em um mundo cheio de glúten e se dá conta que não pode se contaminar, precisando lutar contra isso todos os dias.
Sonia explica que o acompanhamento psicológico é essencial para o celíaco não seguir conselhos de pessoas que não entendem as consequências de comer glúten, quando dizem para comer só um pouquinho. “Enxergue o preconceito como algo característico da dificuldade do outro em não aceitar o que não conhece.”
Mudança na lei deixou produtos mais seguros
A Europa, os EUA e o Canadá seguem a recomendação do Codex Alimentarius que aceita até 20 ppm de glúten (Partículas Por Milhão ou 20 miligramas por quilo de alimento). Isso significa uma mísera migalha em um milhão de partículas, portanto , não é possível para os celíacos comer só um pouquinho de glúten e achar que não vai passar mal.
Legalmente, no Brasil não há um limite estabelecido para traços de glúten nos produtos alimentícios. A Anvisa esclarece que como a Lei Federal 10.674/2003 não cita a questão dos traços e que na alergia alimentar não existe um percentual de traços que seja considerado seguro, todos os produtos que tiverem riscos de terem traços de glúten virão com a inscrição “Contém Glúten”, independente da quantidade de traços que possa existir. Os produtos que usarem a inscrição “Não contém glúten” devem apresentar em seus testes laboratoriais resultados de “traços indetectáveis”.
Descascar mais e desembalar menos
A nutricionista funcional e esportiva Giselle Faccin, explica que no início do diagnóstico, muitos celíacos precisam excluir além do glúten, outros alimentos para o intestino se recuperar melhor e mais rápido. Por isso, é importante preciso sempre os celíacos, alérgicos a trigo e sensíveis ao glúten não celíacos, quando são diagnosticados, optarem mais por alimentos não industrializados, como frutas, verduras, legumes, carne, frango, etc.
A zeína, proteína presente no milho e a caseína, presente nos lácteos, fazem com que alguns celíacos tenham o sistema autoimune despertado, como se tivessem comido glúten. Alguns também reagem a grãos, como feijão, arroz e outros alimentos. Por isso, a profissional enfatiza ser importante o acompanhamento nutricional.
Diferenças das principais desordens relacionadas ao glúten
- Alergia ao trigo: Resposta do sistema imunológico ao trigo. O tratamento é tirar o trigo da dieta.
- Sensibilidade ao glúten não celíaca: A causa é uma resposta de origem desconhecida ao glúten. O tratamento é uma vida sem glúten e sem contaminação cruzada.
- Doença celíaca: A causa é uma resposta do sistema autoimune ao glúten. O tratamento é uma vida sem glúten e sem contaminação cruzada.
Grupos de apoio ajudam a enfrentar a doença
Na Serra Catarinense, celíacos, alérgicos a trigo e sensíveis a glúten não celíacos, encontram apoio no grupo Celíacos Serranos. Uma página no Facebook com esse nome e um grupo no Whats App, ajudam todos a enfrentar as adversidades da celíaca e encontrar outras pessoas que possuem as mesmas experiências. No Brasil, um grupo chamado Viva sem Glúten, também no Facebook, possui cerca de 50 mil celíacos, que se ajudam, trocando receitas, experiências, indicando locais seguros para se alimentar, entre outras maneiras de se apoiar.
No Estado, há a Associação de Celíacos de Santa Catarina (Acelbra), que divulga médicos especialistas nas desordens relacionadas ao glúten, locais seguros para se alimentar em SC, eventos, materiais informativos sobre a doença, entre outras atividades.
Novo segmento de produtos
Em muitos supermercados é possível encontrar prateleiras ou espaços específicos para produtos sem glúten. O que é importante para quem precisa encontrar esses alimentos de forma segura, já que quando uma embalagem está furada e próxima a um alimento com glúten, pode sofrer contaminação e ficar inapto para celíacos.
A lei nº 17077/2017 tinha um objetivo de separar os alimentos sem glúten, porém, foi descrita de forma ambígua, já que determina que esses produtos, poderiam ser expostos com os mesmos de sua categoria.
Por exemplo, uma farinha de arroz, poderia ficar ao lado da farinha de trigo, ou seja, celíacos não poderia comprá-la. Um projeto de lei de autoria do então deputado Gabriel Ribeiro foi criado com o objetivo de alterar a lei, mas depois de muitos meses de tramitação, foi arquivado.
Diante disso, consumidores que não podem comer glúten ficam a mercê da boa vontade dos supermercadistas, que em sua maioria separam os produtos, por considerar um bom nicho de venda.
Para o vice-presidente regional da Associação Catarinense de Supermercados, Jackson Martendal, o segmento de alimentos sem glúten vem crescendo consideravelmente.
“Buscamos produtos específicos sem glúten. Hoje, ainda encontramos dificuldade de comprar, pois há poucas indústrias no ramo, mas sabemos que, no futuro, a demanda vai crescer e, com isso, teremos mais opções no mercado.”
Flavia Anastacio Paula
14/11/2019 at 21:15
Olá Susana e Jornal. Adorei a matéria. Sintética e bem escrita.
Adorei a parte como ao mesmo tempo em que fala sobre a realidade de 1% da população também educa e coloca alternativas para a convivência. “Marmitar” é o nosso jeito de viver atualmente. é a nossa vida, o nosso jeito de continuar vivo, é chique, é elegante, é sofisticado, é necessario.
Obrigada pelo texto caprichado.
Alcione Carvalhaes
13/11/2019 at 20:58
Ficou ótima a matéria, completa, cheia de informações importantes e confiáveis! Você conseguiu fazer um ótimo resumo, ficou bom demais! O celíaco tem sua vida social bastante alterada depois do diagnóstico, mas depois que ele entende que marmitar é vida, que os amigos são mais importante que a comida, aí a vida flui e é só alegria e saúde! Parabéns e muito obrigada pela divulgação tão importante!
Susana Küster
11/11/2019 at 13:45
Obrigada você pelo reconhecimento!
Ester Benatti
10/11/2019 at 17:59
Obrigada por fazer uma matéria tão completa e com informações relevantes e confiáveis.
Ficou muito bom!