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Negra e da periferia, lageana se forma em medicina

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Formada, Ana Carolina vai passar um período trabalhando em Lages, enquanto se prepara para tentar entrar na Residência em Medicina de Emergência - Foto: Divulgação

A última sexta-feira, dia 5 de junho de 2019, é uma data que marca uma conquista histórica para a família Vieira, que mora no Bairro Beatriz, em Lages. A pedagoga Valdirene Vieira, mulher negra, periférica e descendente de escravos, foi às lágrimas ao ver sua filha se formar e se tornar a primeira pessoa da família a ocupar um espaço ao qual, até então, não pertencia.

Depois de quase uma década de dedicação exclusiva e muito estudo, Ana Carolina Vieira, 26 anos, recebeu o diploma de Medicina pela Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), em Florianópolis, escrevendo um capítulo inimaginável na história da família.

Acadêmica cotista do curso, Ana foi uma das seis pessoas negras que colaram grau nesta turma, formada por 52 novos médicos. O caminho até que o canudo chegasse às suas mãos foi bastante intenso e marcante, por isso, Valdirene faz questão de que o baile de formatura seja uma noite inesquecível.

Na noite de sábado (6), quando acontece o baile, Ana vai levar para a pista algo que representa a força de sua história enquanto mulher negra. O tradicional vestido de formatura, feito em seda ou tafetá, geralmente com cor única e muito brilho e pedrarias, deu lugar a um tecido pesado e com uma estampa bastante simbólica para a família: os desenhos contam a história da África e os mitos e crendices de seu povo.

O vestido tem o formato “princesa”, com cauda e um discreto decote, e foi feito por uma costureira em Lages. Para não dizer que não tem brilho, delicadas pedrinhas brilhantes marcam a cintura e contornam o decote.

“Tudo o que se imagina sobre uma formatura de Medicina, nós desconstruímos. Fiz uma pesquisa muito grande a respeito dos conceitos africanos, por isso fizemos este vestido exclusivo, com tecido rústico”, conta Valdirene. Além da roupa fora do comum, Ana Carolina também vai estilizar o cabelo, fazendo tranças que simbolizam sua negritude. No baile, o orgulhoso pai, o auxiliar de topógrafo Roberto Lima, e o irmão caçula, Pedro, 10 anos, acompanharão Ana usando gravatas feitas com o mesmo tecido do seu vestido.

Os desafios enfrentados durante a faculdade contribuíram para a construção da identidade racial de Ana Carolina e da mãe Valdirene – Foto: Núbia Garcia

O despertar para a medicina

Nascida e criada no Bairro Beatriz, Ana Carolina estudou desde a infância até o 1º ano do Ensino Médio no Frei Nicodemos, no Bairro Petrópolis, uma escola pública. Naquele tempo, ela conta que sonhava em se tornar professora como a mãe, pois, afinal, parecia ser o que o destino lhe reservava.

“Na escola pública de bairro, infelizmente, não é dado à criança pobre a oportunidade de sonhar. Nós sempre batalhamos muito, a Ana sempre estudou muito, eu trabalhei bastante, mas, até então, nunca tinha passado pelas nossas cabeças que ela poderia fazer isso, porque é uma profissão que, infelizmente, é muito elitizada. Quando a Ana trocou de ambiente, ela começou a sonhar”, lembra a mãe.

No 2º ano do ensino médio, em 2009, veio a decisão de mudar de escola. Foi então que Ana Carolina conheceu um mundo estudantil e uma realidade muito diferentes da sua. Estudando no Centro Educacional – outra escola pública, mas localizada no Centro da cidade – que ela conheceu um grupo de garotas que queriam estudar Medicina e a incentivaram a seguir estes passos.

“Quando cheguei ali, descobri um mundo novo. As pessoas eram diferentes, conversavam coisas diferentes, e eu acabei me envolvendo com um grupo de meninas que queriam fazer Medicina. Pela primeira vez eu pensei ‘e por que não?’, e comecei a falar pra mãe que tinha vontade de fazer isso”, conta Ana Carolina.

A partir daí começa uma nova saga para a família Vieira. Determinada em cursar Medicina, Ana Carolina e a família sabiam que ela não teria chances se continuasse estudando apenas em uma escola pública.

Em 2010, o último ano do Ensino Médio foi cursado à noite, no Aristiliano Ramos – outra escola pública do Centro -, em paralelo com um cursinho particular preparatório para o vestibular. As aulas, que aconteciam pela manhã, só foram possíveis porque Ana conseguiu uma bolsa de estudos que lhe permitia pagar um valor relativamente baixo.

“Quando a gente foi até a escola particular para tentar uma bolsa, a mãe encontrou uma antiga colega de trabalho, com quem ela convivia quando fazia contação de histórias. Essa mulher foi fundamental pra que as coisas dessem certo, pois ela nos apresentou pro dono da escola e falou quem era a Val, contadora de histórias. Foi graças a isso que eu consegui a bolsa, pois a mãe pagou meus estudos fazendo contação de histórias para esta escola particular”, lembra Ana.

O abismo entre a pública e a particular

Quem pensa que a aprovação no vestibular veio fácil, se engana muito. Ao entrar no universo de uma escola particular, algo totalmente diferente do seu cotidiano, Ana começou a enfrentar outros desafios. Primeiro foi o descrédito com a sua qualidade estudantil.

“Me diziam que meu 10 da escola pública se transformaria em um 6. Cheguei no cursinho e não sabia nem coisas básicas, como o que é um carbono, porque eu nunca tinha visto. O atraso era muito grande. Eu passei um ano em que vivia duas realidades paralelas: de manhã um terceiro ano com uma turma de pessoas que viviam para estudar, viviam sua adolescência; e a noite eram várias pessoas casadas, mais velhas, com filhos e que trabalhavam o dia todo. Foi um ano muito estressante, nem lembro de ter passado”.

Um episódio de racismo, sofrido em um dia que estava gripada e espirrando bastante, a fez sentir um choque de realidade. “Eu sentava bem na frente da sala e uma pessoa falou que tava impossível estudar com a ‘negrinha ranhenta’ espirrando o tempo todo e atrapalhando a turma inteira”, lembra. Um professor atento à situação, aproveitou para debater com os alunos sobre racismo e respeito ao próximo.

Óbvio que com a diferença educacional vivenciada por Ana, ela não conseguiu entrar no curso de Medicina na primeira vez que tentou. Foram três vestibulares até ser aprovada na Ufsc. No meio do caminho, ela chegou passar para Medicina Veterinária na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em Lages. Cursou um semestre e, apesar de ter se dado muito bem nas matérias técnicas, sabia que não era este o seu destino e decidiu continuar tentando a Ufsc.

A tão sonhada aprovação aconteceu no vestibular de 2012 e, no segundo semestre do ano seguinte, depois de garantir a sua vaga pelo sistema de cotas, começou mais uma saga. Durante os seis meses de espera para que o curso começasse, Ana aproveitou para descansar dos anos intensos de preparação e se organizou para se mudar para uma cidade a qual nunca havia nem visitado.

“Aí contamos com outra ótima pessoa. Uma amiga da mãe, que conhecia bem Florianópolis, foi com a gente até lá, nos apresentou à cidade e a universidade e me ajudou a encontrar um lugar pra morar”, lembra Ana.

Ela decide enfrentar o racismo

Na universidade, outro desafio esperava por Ana Carolina, que passou a conviver com pessoas da elite do estado e de fora dele. Pessoas muito ricas, as quais jamais havia pensado conhecer. Nos anos de faculdade, episódios de racismo velado e descarado acabaram por transformá-la, alimentando uma sede por reconhecimento e empoderamento racial.

Seja um professor em sala de aula que não lhe direcionava perguntas, por acreditar que ela poderia não saber; seja o segurança do hospital onde fazia internato (que uma vez chegou a cobrar dela a carteirinha para acessar o hospital – algo que não fazia com outros colegas brancos); seja porque os colegas brancos eram chamados pelos pacientes de doutor, e ela de enfermeira. Tudo contribuiu para a construção de sua identidade enquanto mulher negra.

“Quando eu comecei a ver o porque que me tratavam daquele jeito diferente dos outros, passei a me impor e entendi quem eu sou”. Para a acadêmica Ana Carolina e também para a mãe Valdirene, o final da faculdade foi um processo de descobertas e autoafirmação da identidade negra da família. A garota da periferia que alisava os cabelos para se parecer com as amigas, aprendeu a amar seus cachos e deixou eles se revelarem. Junto com a mudança do cabelo, veio a mudança de postura e de comportamento.

“Hoje me vejo como mulher negra, vinda da periferia, me autoidentifico e uso isso contra o sistema. É muito poderoso, as pessoas não aguentam. A todo momento, quando alguém me objetifica ou me ofende, eu vou pra cima parecendo um monstro. Quem é negro acaba se acostumando [com desrespeito e racismo] e vai enfrentar isso. Eu vou brigar com todo mundo todo dia, mas as pessoas vão ter que aprender a respeitar”, afirma.

Há cerca de um ano, faltando alguns meses para a graduação, um grande desgaste físico e emocional levou Ana a ser diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada. Em meio a um momento crucial – o internato – ela precisou largar tudo. Por uma semana ficou em Lages, sob os cuidados da família, pensou em abandonar a faculdade, mas respirou fundo e voltou para concluir a missão de se tornar médica.

Exemplo mostra que é possível

O orgulho que a família Vieira sente de Ana Carolina transborda pelos olhos da mãe. Professora da Educação Infantil há quase três décadas, Valdirene é formada em Pedagogia pela Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), pós graduada em Psicopedagogia e mestre em Educação. Irmã mais velha de uma família com seis filhos, ela conseguiu romper um ciclo de falta de oportunidade e miséria e contou com a ajuda de várias pessoas ao longo de sua trajetória para que pudesse estudar.

Descendente de escravos, ela e os irmãos cresceram sem grandes perspectivas. A família acreditava que ter se tornado professora, parecia a coisa mais grandiosa que eles poderiam ter feito, até que Ana surgiu com o sonho de ser médica. A sala de casa, onde as duas receberam a reportagem do Correio Lageano, é decorada com uma grande foto da nova médica vestindo jaleco, que foi emoldurada e cuidadosamente colocada na parede.

“Conversei com várias pessoas aqui em Lages, da Medicina na Uniplac, da Regional de Saúde e descobri que não há registros de outro negro lageano que tenha se formado em Medicina. Minha filha é a primeira e isso nos orgulha muito, porque a gente tá mostrando para os negros lageanos que é possível. Ser a primeira é um peso histórico e ela vai ter que aprender a lidar com isso, porque agora nossos iguais têm em quem se espelhar”, completa a Valdirene.

Longe de acreditar em meritocracia, mãe e filha têm plena convicção de que ambas alcançaram suas conquistas educacionais graças a uma combinação de oportunidades e pessoas que cruzaram suas vidas oferecendo ajuda em momentos ímpares.

Depois da colação de grau, o “DR” na frente do nome confere a Ana outro status social: de garota negra da periferia e sem perspectivas, ela passa a ser a médica formada em uma das universidades públicas mais conceituadas do país.

A partir da próxima segunda-feira, a doutora Ana Carolina volta para Lages em posse do seu registro no Conselho Regional de Medicina e começa a escrever um novo capítulo em sua história. Ela pretende trabalhar em uma unidade de Saúde e atuar no Pronto Atendimento. No fim de 2020, quer fazer a prova para entrar na Residência em Medicina de Emergência e, quando concluir, quer voltar a trabalhar na sua terra Natal.

Imagens da colação de grau em medicina

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