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#CLentrevista o sociólogo e antropólogo Geraldo Löcks

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Foto: Jordana Boscato

Geraldo Löks: Eu cheguei em Lages em 1966, quando a cidade completava 200 anos, o seu bicentenário, e hoje estamos celebrando 253 anos. Portanto, tenho 53 anos, excedendo os momentos que estive fora, mas eu posso dizer que são 253 anos de Lages em minha vida.   

Correio Lageano: O senhor já escreveu diversos artigos e publicou livros a respeito da história de Lages. A história tradicional e oficial fala de figuras históricas como, por exemplo, membros da família Ramos. De que forma o senhor analisa a história de Lages e a inclusão de outros grupos para discussão e reflexão dos fatos históricos?

Geraldo Löcks: Na oportunidade em que eu fui fazer o mestrado em Antropologia Social, na Universidade Federal de Santa Catarina, procurei aprofundar mais elementos da nossa história social, econômica, política e cultural, como nós nos constituímos enquanto povo serrano, povo lageano. Na época, acabei tomando a grande fazenda de criação de gado, como não só um espaço geográfico, mas um espaço simbólico para compreender e defender o seguinte princípio, que a base da nossa formação social, quanto povo lageano e serrano, dentro do que eu tenho chamado de cultura de fazenda. Exatamente o nosso primeiro modo de produção foi estruturado no  latifúndio, isso no século XVIII, quando da fundação da vila, da nossa cidade hoje. Essa relação, esse período, é marcado de 1766 até, aproximadamente, 1940, longo período quando há um declínio da pecuária e o início de outro modo de produção, que é a exploração da madeira. Mas nesse longo período, de mais de 150 anos, eu defendo a ideia que foi no bojo dessa cultura de fazenda, que se engendraram as nossas relações sociais, econômicas, políticas, a nossa identidade cultural de povo serrado, povo lageano. 

Nessa época que o senhor se refere, havia, não só em Lages, mas em toda a região, as grandes fazendas. Hoje essas fazendas já se dividiram, subdividiram… já é um pouco diferente. De que forma o senhor vê essa evolução?   

Neste período, vou dar alguns exemplos bem concretos, forjaram-se, por exemplo, os diferentes grupos étnicos, que existem aqui na nossa região, que é a nossa riqueza cultural, a diversidade étnica. Inicialmente, tivemos os povos indígenas,  depois com a presença do colonizador, paulista, branco, que esteve em contato com os nativos, tivemos outro segmento que hoje denominamos de caboclo, mais tarde outras migrações de descendência européia, italianos, alemães. Ainda, mais recentemente, na década de 50, a presença de japoneses, dos letos (provenientes da Letônia), em Urubici. Então, podemos enumerar grupos culturais muito grande que compõem a nossa identidade. Quando falo de identidade, estou me referindo às perguntas: Quem nós somos? Como nós nos constituímos? Qual a nossa maneira de estar e viver no mundo que caracteriza o ser lageano, o ser serrano? A identidade étnica se produz por contraste, relação, quando eu olho para um população litorânea, ou do Oeste Catarinense, me vejo um lageano, um serrano, com características próprias. Nós temos a nossa identidade, e eu defendo essa ideia, que foi nesse longo período da cultura de fazenda que nós nos forjamos. Temos um costume em dizer que somos gaúchos. Na nossa identidade há valores gaúchos, mas há um jeito próprio lageano, serrano de ser. Essa identidade se expressa na nossa gastronomia, no nosso vestuário, nossas festas, nossa maneira de ver o mundo, de conceber o trabalho, de perceber o nosso grau de consciência cidadã, de participação na coisa pública. A nossa identidade mostra nosso retrato, onde temos uma música própria, uma tradição própria, uma maneira de pensar, o mundo, o trabalho e suas relações, que são próprias da nossa cidade, da nossa região.

Hoje o mundo é muito globalizado, e a gente acaba recebendo influência de todos os lados. Atualmente, por exemplo, há muitos chineses morando aqui em Lages, constituindo comércio, vivendo aqui no nosso meio, alguns mal falam Português. Mas apesar de absorver um pouco dessas características, a gente mantém as nossas próprias.

Com certeza. De um lado temos essa tradição, que tem uma história constituída pelas gerações que nos sucederam. Nós fazemos a história, nesse momento, nossa identidade está passando por transformações, e um dos fatores que gera essa transformação, são as novas tecnologias de comunicação e, entre elas, podemos enumerar fortemente o celular, e todas as ferramentas que ele nos possibilita. Então, a gente já não tem mais uma identidade que eu poderia dizer única, mas ela vem passando por um momento de metamorfose, por um certo hibridismo. Mas, apesar das mudanças, acho que Lages e a nossa região guardam um peso da tradição muito forte, têm uma raiz muito forte. Inclusive, quando fiz esse estudo, percebi que muitas práticas do passado, da nossa tradição, persistem fortemente em nossos dias.

Além da globalização, o mundo vive a questão da imigração, e isso acaba interferindo na construção e na identidade dos povos.

Isso mesmo. Não existe mais uma cultura isolada, a cultura, por si mesma, é dinâmica, está em constante transformação, as identidades não são fixas, são históricas, sociais, culturais. Então, a nossa identidade de povo lageano, de povo serrano, vem passando por esses processos de transformação. Uma questão que eu trago como um desafio para nossa cidade, nos seus 253 anos de existência. Há uma herança muito forte que a gente tem que superar, que é a desigualdade social. Temos uma paisagem muito bonita, quem não gosta da Serra, quem não gosta das florestas, da Araucária, que é o nosso grande símbolo. O turismo hoje está ganhando uma dimensão mais importante para nossa região. Povo acolhedor, natureza muito preservada. Mas a outra paisagem que eu queria me referir, é a paisagem humana, marcada fortemente pela desigualdade social. Essa desigualdade social, que chamamos também de questão social, tem origem lá na nossa história, da cultura de fazenda, quando, historicamente, a gente não tem construído uma sociedade, mais igual, mais solidária, mais justa, o nosso modelo de desenvolvimento ainda é bastante insustentável. Então, há um desafio grande para nós enquanto sociedade, para gestores públicos, para aquelas pessoas que exercem uma liderança na cidade, para trabalharmos pelas vias das políticas públicas, a superação desse grande desafio histórico, que eu chamo de desigualdade social. Há uma vontade geral para isso, mas precisamos criar espaço de participação da sociedade, para a superação desse problema histórico. E nós tivemos, no passado, década de 70, uma administração que foi conhecida na região, no Estado de Santa Catarina, no Brasil, que trouxe alimentos importantes, porque de uma maneira muito simples abriu espaço, mecanismos de participação para a população, no fim do regime militar que vivíamos entre os anos 70 e 80. Então, eu acho que temos experiências acumuladas, temos uma história de desafio, mas também de conquistas importantes que estão escritas de uma forma simbólica, nas nossas ruas, nas nossas escolas, nossas relações sociais, pra dizer que eu gosto muito dessa expressão: gosto de viver em Lages, gosto de viver na região serrana. Lages é uma cidade gostosa, maravilhosa para se viver, com problemas, desafios. Eu queria deixar isso, uma esperança que nós temos condições históricas de mudar a realidade construída por gerações que nos antecederam. E esse desafio está nas mãos das gerações presentes e futuras.  

Colaborou: Jordana Boscato

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