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Poliomielite deixou marcas em quem contraiu vírus
Num bairro pobre de Itajaí, no Litoral de Santa Catarina, o menino Décio Lima só podia frequentar a praia durante a noite. Durante o dia, quando tudo era visível, sofria com o preconceito por causa dos efeitos da poliomielite em suas pernas.
Por causa do vírus, que contraiu aos 11 meses de vida, os pés e pernas ficaram tortos. No Centro de Lages, na mesma década, o garoto Narciso aprendia a jogar bola e a correr pela Rua Coronel Córdova com os vizinhos e irmãos.
A doença também tirou parte da sua mobilidade. Ainda em Lages, João Amarante também foi vítima de uma das doenças que mais se alastrou pelo mundo, mas foi só aos 40 anos que os efeitos afetaram gravemente sua vida. Já são 30 anos em uma cadeira rodas mecânica, já que perdeu os movimentos de braços e pernas.
Há tempo que não se escutam mais histórias como essas. Crianças que nascem sem deficiências e, por causa de um vírus, apresentam problemas nos membros e até perdem a capacidade de andar. A evolução da medicina levou ao desenvolvimento da vacina contra a Poliomielite, que erradicou a doença no mundo inteiro.
Até a erradicação, foram 26.827 casos de poliomielite entre 1968 e 1989. Os anos 70 registraram a maior parte dos casos. Há um pico em 1975, com 3.596 registros. Outro ano com muitos casos foi 1979, com 2.564 infecções. Foi só em 1989, com campanhas intensas e iniciativas nacionais, que o Brasil registrou o último caso do vírus selvagem, em Souza (Paraíba).
O advogado, professor e político catarinense, Décio Lima nasceu normal, em uma família simples no interior de Itajaí. Aos 11 meses de idade, os pais notaram o surgimento de uma febre alta. Ali começavam os efeitos da doença que carrega por todos os dias de sua vida. Na época, eram poucos os recursos para o tratamento. Geralmente, era feito em casa, os bairros não tinham nem mesmo Unidades de Saúde.
As sequelas se acumularam, principalmente, em uma das pernas, que ficou atrofiada e trouxe junto problemas nos ossos tíbia e fêmur. O peito do pé de Décio virou a sola. Ele lembra de tudo o que passou com detalhes. “Não sai mais da vida da gente, nunca. O sofrimento não é só físico, mas o mais difícil era o preconceito”, relembra.
Décio gostava de jogar futebol, mas não podia, porque os outros meninos o chamavam de “aleijadinho”. Gostaria de poder ter tocado corneta na banda da escola, mas não o deixavam por causa da deficiência. Visitar a praia, era só durante à noite, porque era considerado feio demais para aparecer em público.
Como uma tentativa de mudar de vida, um tio o levou para o Rio de Janeiro, aos 11 anos, para passar por cirurgias que poderiam melhorar a mobilidade. Como a família era muito carente, ficou sozinho na cidade, onde passou por 11 cirurgias e ficou seis meses engessado da cintura para baixo.
“Imagina um menino no hospital, sem ser tocado por familiares, colocado numa enfermaria”, conta Décio. Por mais difícil que fosse, a felicidade ao chegar no hospital era muito grande, porque tinha uma chance de levar uma vida normal. As cirurgias foram objetos de muitos seminários de ortopedia no Brasil, em 1972. Depois dos procedimentos, Décio conseguiu andar e se movimentar sem muitas dificuldades.
Como uma forma de mostrar seu potencial, começou a estudar. Tornou-se compulsivo pelos estudos e o desespero de ficar sozinho era abafado pelo otimismo e esperança. Formou-se em Direito, tornou-se professor e entrou para a vida pública. Foi vereador e prefeito de Blumenau. Foi eleito deputado estadual e, em 2018, concorreu ao Governo de Santa Catarina, ficando em quarto lugar.
A pauta da deficiência é constante na vida dele como político. “Eu não deixo uma obra acontecer sem que tivesse em seu projeto a acessibilidade”, revela. Para se manter forte e capaz, a atividade física é essencial em sua rotina.
Do menino que era proibido de jogar bola, hoje Décio, aos 58 anos, adotou o ciclismo como esporte diário há muitos anos. Consegue peladas de 20 a 30 quilômetros por dia, chegando a alcançar 100 quilômetros.
Vida normal ajudou a enfrentar as sequelas
O hoje engenheiro civil do Deinfra, Narciso Leal Narciso, contraiu o vírus aos oito meses de idade. Os membros inferiores foram os mais afetados. A família, mesmo preocupada com a condição do menino, fazia questão de inseri-lo nas mesmas atividades que os irmãos.
Criado no Centro de Lages, Narciso brincava na rua com amigos e irmãos, jogava bola, corria e praticava todas as atividades de uma criança sem limitações, mesmo com sua deficiência. “Eu não era diferente de ninguém e aprendi a me adequar”, ressalta Narciso. Dois irmãos também contraíram a doença, mas não apresentaram sequelas tão graves.
Assim como Décio Lima, Narciso ficou um ano internado em uma espécie de clínica de reabilitação no Rio de Janeiro. Passou por cirurgias para minimizar os efeitos do vírus, e apresentou melhoras. Passou no vestibular para Engenharia Civil da Universidade Federal de Santa Catarina e foi morar sozinho em Florianópolis.
Resolveu morar no Centro, em uma república, longe da universidade. Com isso, aprendeu a se adaptar a todas as situações. Saia mais cedo que todo mundo, para chegar ao ponto de ônibus a tempo de pegar um lugar vago, já que não podia fazer a viagem em pé.
O que tornou toda essa experiência mais fácil, foi que Narciso aprendeu a aceitar sua condição. Tentar melhorar com suas adaptações. As sessões de fisioterapia são inadiáveis. Há 38 anos atuando como servidor estadual, já poderia ter se aposentado, mas é seguindo na rotina que continua a manter-se ativo.
Doença se manifestou mais gravemente anos após descoberta
O radialista lageano João Amarante faz parte da estatística de 25% a 50% de pessoas que sobrevivem à pólio paralítica na infância, mas desenvolvem sintomas adicionais décadas após a recuperação da infecção aguda, principalmente, agravamento da fraqueza muscular e fadiga extrema. Aos 40 anos, a sindrome se manifestou e, deste então, J Amarante ou Dico, como é conhecido, só se locomove com o auxílio de uma cadeira mecânica.
Ele contraiu o vírus aos dois anos. Os sintomas começaram com muitas quedas. Na época não existia a vacina e Dico contraiu a pólio parcial. Com isso, conseguia caminhar, mesmo com dificuldades e curtas distâncias.
A muleta, muitas vezes não era necessária. Quando criança, podia jogar bola, andava de carrinho de rolimã, brincadeiras normais para a época. Depois que fez uma cirurgia de correção em um dos pés, as dificuldades aumentaram.
Uma das vontades que sempre teve, mas não pôde realizar por causa da doença, foi praticar atividades esportivas. A carreira militar também era um sonho, mas não foi aceito por causa da deficiência.
Foi em 1977 que se encontrou na profissão de radialista, área que atua até hoje. É um dos locutores da Rádio Clube de Lages. Entretanto, sente que, por causa da deficiência, poderia explorar ainda mais a profissão, já que as limitações, por causa da cadeira de rodas, o impedem de fazer reportagens nas ruas.
A saúde sempre foi boa e isso ajudou a levar uma vida normal. Foi aos 40 anos que sentiu a poliomielite voltando e os membros superiores e inferiores foram afetados. Entretanto, há 10 anos a doença não evolui.
Observando alguns movimentos atuais, que são contra a vacinação de crianças, Dico revela não entender como há pessoas com esse pensamento. “É de graça, rápido e o benefício que oferece, não tem nada que pague”, ressalta o radialista.