Essencial

O legado de Zé do Caixão

Published

em

Foto: Divulgação

José Mojica Marins ou Zé do Caixão. Duas figuras que se confundem, pai e criador, respectivamente, estão presentes na cinematografia brasileira desde a década de 1960. Quando no filme nacional de baixo orçamento chamado “À Meia-Noite Levarei Sua Alma”, surgia a figura do agente funerário sádico e sanguinário, Mojica talvez não imaginasse o legado que viria a deixar, décadas após, para o cinema e os filmes de terror nacional.

Nascido em uma fazenda pertencente à fábrica de cigarros Caruso, no Bairro da Vila Mariana, em São Paulo, Mojica, quando tinha 3 anos, mudou-se com a família para os fundos de um cinema, na Vila Anastácio. Lá, seu pai começou a trabalhar como o gerente do local.

O pequeno Mojica passava horas lendo gibis, assistindo a filmes na sala de projeção do cinema em que seu pai trabalhava. Brincava de teatro de bonecos e montava peças com fantasias feitas de papelão e tecido. Aos 12 anos, ganhou uma câmera V-8 e, desde então, não mais parou de fazer cinema. Fez seus primeiros filmes ainda na década de 1950, mas foi em 1964 com o lançamento do seu primeiro trabalho no papel de Zé do Caixão, que conquistou o cinema nacional.

Foram 10 longas-metragens, ao todo, nos quais a figura de Zé do Caixão apenas aparece ou é protagonista: À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964); O Diabo de Vila Velha (1965); Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966); O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967); Inferno Carnal (1976); A Praga (1980); A Encarnação do Demônio (1981); Horas Fatais – Cabeças Cortadas (1983); Dr. Frank na Clínica das Taras (1986); e Encarnação do Demônio (2008).

Todo esse trabalho deixou um legado para diversos cineastas e atores brasileiros. Dentre eles, o lageano Armin Daniel Reichert. Diretor de cinema do gênero terror, Armin tem Mojica como mestre e, consequentemente, influência em sua carreira. Ainda jovem, quando via as fitas dos filmes de Zé do Caixão nas locadoras, mesmo antes de assistir àquelas obras na época, Armin notava a força daquela figura. “Aí, você vê um cara, um um artista nacional, fazendo o terror daquela forma. Era um brasileiro fazendo o terror de um jeito, que o Brasil não tinha igual.”

Para o cineasta, fazer esse gênero por aqui não tem como não ser influenciado tanto pelo Mojica quanto pelo Zé do Caixão. Segundo Armin, ele abriu as portas para o terror nacional e trouxe olhares do mundo todo para cá. Mojica teve seus títulos lançados na Europa e nos Estados Unidos, onde participou de mostras, festivais e recebeu prêmios. No Brasil, não conseguiu o mesmo sucesso ou reconhecimento. Existem poucos títulos disponíveis no mercado, o que tornou sua obra pouco conhecida.

Sua participação na mídia se dava quase sempre de maneira cômica, fato que teve de abraçar por necessidades financeiras. Entretanto, mesmo sendo considerado tosco e estranho por muitos, conseguiu influenciar muita gente. Além de Armin, nomes do cinema nacional como Rodrigo Aragão, Juliana Rojas, Gabriele Amaral, Peter Baiertorf e uma série de produtores independentes tem a obra do Zé do Caixão como referência.

A origem do personagem

Em diversas entrevistas, Mojica conta que o personagem surgiu de um sonho. Conta que, certa noite, ao chegar em casa bem cansado, foi jantar. Em seguida, estava meio sonolento, entre dormindo e acordado. Aí que tudo aconteceu. “Vi, num sonho, um vulto me arrastando para um cemitério. Logo, ele me deixou em frente a uma lápide, lá havia duas datas, a do meu nascimento e a da minha morte. As pessoas em casa ficaram bastante assustadas, chamaram até um pai-de-santo por achar que eu estava com o diabo no corpo. Acordei aos berros, e naquele momento decidi que faria um filme diferente de tudo que já havia realizado. Estava nascendo, naquele momento, a personagem que se tornaria uma lenda: Zé do Caixão. A personagem começava a tomar forma na minha mente e na minha vida. O cemitério me deu o nome; completavam a indumentária do Zé a capa preta da macumba e a cartola, que era o símbolo de uma marca de cigarros clássicos. Ele seria um agente funerário”, relatou, segundo o Portal Brasileiro de Cinema.

Zé do Caixão é uma personagem amoral e niilista, que se considera superior aos outros e os explora para atender aos seus objetivos. É descrito como um descrente obsessivo, um ser que não crê em Deus ou no diabo. O agente funerário é cruel e sádico, temido e odiado pelos habitantes da cidade onde mora.

Sua saga é sua obsessão pela continuidade do sangue: quer ser o pai da criança superior, a partir da “mulher perfeita”. Sua ideia de uma mulher “perfeita” não é exatamente físico, mas alguém que ele considera intelectualmente superior à média, e nessa busca ele está disposto a matar quem cruza seu caminho.

“É um personagem que trazia tudo de pior que tinha na humanidade. Representava tudo de pior no homem brasileiro. Então, ele era um personagem maligno, machista, repugnante, sem compaixão nenhuma. Tanto que em todos os filmes dele, acabava sempre só”, observa Armin.

A criação visual de Zé do Caixão tem inspiração em Drácula, da década de 1930. Contudo, Mojica acrescentou, aos trajes negros e elegantes, características psicológicas profundas e enraizadas nas tradições brasileiras. Além disso, as unhas grandes foram claramente inspiradas em Nosferatu.

Foto: Arquivo/Divulgação

Carreira

Os filmes foram censurados pela Ditadura Militar Brasileira, por serem considerados amorais e subversivos. É comum ver em suas obras, mulheres seminuas, personagens que estão reféns do sadismo de Zé do Caixão. Utilizavam-se diversas artimanhas para perturbar e torturar suas vítimas. Isso, para a época, ainda que de muitos filmes trashs e gore (com bastante sangue e vísceras) era considerado fora de ordem para muitos brasileiros.

Embora Mojica tenha sido conhecido, principalmente, como diretor de cinema de terror, teve trabalhos anteriores cujos gêneros variam entre faroestes, dramas, aventura, dentre outros, incluindo filmes do gênero pornochanchada, no Brasil, durante aquela época. Desenvolveu um estilo próprio de filmar que, inicialmente desprezado pela crítica nacional, passou a ser reverenciado após seus filmes serem considerados cult no circuito internacional. É considerado um dos inspiradores do movimento marginal no Brasil.

Muitos de seus filmes artesanais, feitos naquela época, eram exibidos em cidades pequenas, cobrindo, assim, os custos de produção. Autodidata, montou uma escola de interpretação para amigos e vizinhos e quando tinha 17 anos, depois de vários filmes amadores, fundou, com ajuda de amigos, a Companhia Cinematográfica Atlas.

Especializado em terror escatológico, criou uma escola de atores em 1956, local onde, na década seguinte, montaria uma sinagoga, no Bairro do Brás (São Paulo), onde fazia experiências com atores amadores, usando insetos para medir sua coragem.

Depois de seus últimos filmes, na década de 1980, apresentou, a partir de 1990, o programa Cine Trash (Rede Bandeirantes), o qual tinha altos picos de audiência, devido às apresentações macabras de Zé do Caixão, que se tornaram um marco na televisão brasileira.

Em 2008, voltou com tudo, para o último longa-metragem Encarnação do Demônio. Esse é o filme que encerra a trilogia iniciada com À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1963), e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967). Teve um orçamento estimado em R$ 1 milhão, captados através de leis de incentivo e é o maior orçamento já administrado por Mojica Marins, que estava há 30 anos sem dirigir um longa-metragem.

O filme foi selecionado para ser exibido no Festival de Veneza, em 2008, numa mostra chamada “Midnight Movies”. Nele, foram incluídas cenas em preto e branco dos filmes anteriores de Zé do Caixão (“À Meia Noite Levarei Sua Alma”, “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” e “O Despertar da Besta”). Desde então, fez poucas aparições, encerrando sua carreira com o curta Saci, dentro do longa Fábulas Negras. Obra que reuniu diversos diretores brasileiros do gênero terror.

Morte

Mojica morreu na última quarta-feira (19), em decorrência de uma broncopneumonia. Para muitos, uma perda lastimável. Como para o ator Matheus Nachtergaele, que interpretou Mojica e, consequentemente, Zé do Caixão, na série televisiva homônima para o canal pago Space. “Palhaço brasileiro, sobrevivente e amoral. Repito: o Mojica foi um homem que colocou os dois pés na jaca dessa vida. Que descanse em paz”.

Para o lageano Armin, ele é um um ícone. “Agora, com sua morte, que as pessoas assistam o filme dele e tudo sobre como foi a luta da vida dele para fazer cinema. Fica um agradecimento, por ele ter sido alguém inspirador, que quebrou o caminho e, principalmente, mostrou que era possível a gente fazer terror no Brasil, com a nossa cultura, com o nosso folclore, com as coisas da nossa terra”. Mojica esteve em Lages em 1997, para a divulgação do filme Homem Sem Terra, produzido por João Amorim e Altair Amorim, no qual fez uma participação. Este projeto foi gravado inteiramente em Lages e região, com atores de diversos lugares. A direção e roteiro foi de Francisco Cavalcanti. Assista ao lançamento do longa, em Lages, no Cine Marrocos.

clique para comentar

Deixe uma resposta