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Moradores mantêm tradição da recomenda das almas

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Fotos: Adecirf Morais

Uma noite fria, típica do outono da Serra Catarinense, acompanhada de um céu estrelado, digno de ser contemplado e a lua cheia brilhante que iluminava as ruas da cidade. O cenário fez parte de um ritual que acontece todos os anos durante a quaresma, em Campo Belo do Sul, especialmente às quartas-feiras e sextas-feiras. É tempo de recomendar almas.

Dentro ou fora de casa, é possível escutar uma prece cantada. A reza é feita por homens da região para as almas que estão perdidas no mundo. A Recomendação das Almas é um ritual que, segundo o relato dos praticantes, tem origem entre o final do século XIX e início do século XX.

Os moradores mais antigos relatam que aprenderam com São João Maria a fazer a recomendação, quando da sua passagem pela região, antes da Guerra do Contestado. As mulheres também podem participar, mas a maioria dos grupos é composta por homens.

Moisés de Oliveira, de 66 anos, é o capelão, o chefe do grupo de recomendadores. Ele foi escolhido por ter a “reza forte” e ser conhecedor de muitas orações. Além disso, aprendeu com o pai a função e, desde os 14 anos recomenda almas. Moisés, conhecido por Laranjeira, lidera a equipe, mas garante que todos sabem como fazer.

Antes, o caminho que era percorrido a cavalo, agora é feito de carro. Quando o sol se põe, os amigos se reúnem na casa do capelão. Todos se cumprimentam com abraços calorosos, são conhecidos de longa data e muito felizes.

João Sebastião do Amaral, de 77 anos; Sebastião Vilson Córdova Pereira, de 62 anos; Laurindo Moraes da Silva, de 48 anos e o filho Kauan Silveira da Silva, de 12 anos; Antônio Aldori de Oliveira, 54 anos; e Pedro Miguel de Oliveira, 59 anos; integram a equipe. Kauan é filho de Laurindo e participa desde o ano passado. Ele já conhece as preces e também reza.

Na cozinha da casa de Moisés, é servido um café, com direito a queijo, mel e pão. Todos se alimentam e se preparam para sair de casa. O evento deve ser feito à noite. Moisés explica que o grupo tem por obrigação visitar um número ímpar de casa. Eles percorrem cerca de sete por noite, caso não sejam sete casas, devem ser cinco ou nove.

O ritual de recomendação

A primeira casa visitada da noite é da dona Nildete Aparecida da Silva Pereira, 61 anos. Ela é a guardiã de um dos posinhos (pouso) de São João Maria, além de ter uma fonte de água. O local é muito visitado por turistas e moradores da Serra.

Os homens saem do carro, seu Moisés leva a matraca na mão, instrumento de madeira, feito à mão, utilizado para convidar as almas que serão encaminhadas ao descanso eterno, por isso, que elas são recomendadas.

O grupo segue porteira adentro no terreno de dona Nildete e se organiza: três de um lado, e outros três de outro. A composição é importante para o andamento da recomenda. A primeira parte é feita pelo trio onde está o capelão, que fala para qual alma irão rezar, o segundo momento, chamado de resposta, é feitas pelos outros integrantes.

O canto, segundo o gestor e agente cultural da Associação Matakiterani, Gilson Máximo de Oliveira, é semelhante aos cantos da península ibérica, pelo ritmo e tom elevado. Em cada intervalo das preces, é rezada uma Ave Maria e um Pai Nosso.

Gilson explica que as pessoas e as comunidades que praticam a recomendação de almas se caracterizam por viverem isoladas do meio urbano, de forma significativa o suficiente à perpetuação da prática.

Hoje, no entanto, os mecanismos de reconhecimento sobre a importância e o valor desta devoção vão além dessas comunidades. “Essas práticas são fundamentais para a sua continuidade. Elas possuem uma dimensão regional e até nacional compreendidas como um patrimônio da cultura brasileira que precisa ser conhecido em diferentes locais e contextos sociais”, ressalta o gestor.

A Matakiterani acompanha e pesquisa desse ritual desde 2002, e tem sido convocada por lideranças laicas para auxiliar em atividades como o registro em vídeo dos anciãos, visitas nas escolas e investigação de fragmentos dessa tradição.

As almas que recebem oração

São recomendadas sete almas diferentes, entre elas, as enforcadas, afogadas, atiradas, acidentadas, as do purgatório. Quando a matraca é tocada, um tipo de alma será convidada para ser abençoado. “A recomendação é feita na quaresma pois é o tempo de sofrimento de Jesus Cristo, as almas estão perdidas e são lembradas e nós ajudamos elas”, explica o capelão.

No primeiro dia da quaresma, as almas são convidadas, no cemitério, para caminhar com os recomendadores. Na Sexta-feira Santa, elas são entregues no cemitério e, como forma de despedida, cada recomendador deixa uma cruz no muro ou taipa do cemitério.

Para João Sebastião, conhecido como Seu Barriga, um dos integrantes mais velhos do grupo, fazer a recomenda das almas é sinônimo de gratidão, pois sente que estão fazendo o bem para alguém, além de receber saúde há anos para poder rezar.

Ao finalizar a recomenda em frente à casa de Nildete, ela cumprimenta a todos, e convida para comer bolachas. O capelão comenta que quem quiser receber o grupo, abre as portas da casa, se não, pode deixar as portas fechadas que eles seguem para outro local.  

Nildete sabe benzer de quebrante e é convidada pelas pessoas para fazer as rezas antigas. Ela cuida da capelinha de São João Maria, onde os pedidos são depositados e, segundo ela, sempre atendidos. “Tenho alcançado muitas graças.”

Depois de uma despedida alegre e abençoada, todos entram em uma camionete e seguem para a segundo casa. Desta vez, é a de Vidal Lourenço, endereço que recebeu pela primeira vez uma recomenda. Para ele é importante manter as tradições, mais ainda essas rezas que devem ser feitas com fervor.

Em cada residência que chegam, os recomendadores de alma levam em média 20 minutos para realizar a cerimônia, além dos convites para entrar e comer alguma coisa. Os homens seguem o caminho rumo às localidades do interior de Campo Belo do Sul e costumam retornar às suas casas por volta das 2 horas.

Amizade

Algo que chama a atenção é a amizade entre os recomendadores. Sempre que se encontram ou se despedem, se abraçam, falam sobre assuntos alegres e se empolgam com a chegada dos amigos. A energia no grupo é muito positiva.

Matraca

Uma matraca é um instrumento musical e sinalizador constituído geralmente de madeira onde existe um pedaço de ferro curvilíneo que, quando sacudido, produz som. É usada no Brasil, em pequenas cidades por vendedores e também na quaresma para anunciar uma procissão. O instrumento substitui os sinos na Semana Santa.

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