Geral
Liberação de remédio a base de Cannabis não significa acesso
Há quase uma década, Jair Almeida Lopes Filho, que hoje tem 57 anos, foi diagnosticado com demência frontotemporal, uma doença que provoca degeneração de um ou de ambos os lobos frontais e temporais do cérebro. Os lobos frontais são responsáveis por regular o humor, o comportamento, o julgamento e o autocontrole.
Os primeiros sintomas estavam relacionados à memória. A esposa dele, Neida Maria Lopes, 54 anos, conta que o casal tinha um comércio em Otacílio Costa, onde a família mora, e foi justamente no trabalho que Jair começou a demonstrar os primeiros sinais da demência.
“Ele esquecia como fazer o troco para os clientes, e os próprios clientes acabavam fazendo o troco quando pagavam algo. Depois, ele esqueceu como ler e escrever e também não sabia mais ver as horas”, conta.
Em busca de tratamento, a família conheceu, pela internet, casos de pacientes que tiveram significativa melhora em seus quadros clínicos com o uso do óleo de cannabis. Por isso, solicitaram ao neurologista que acompanha o caso de Jair que receitasse o medicamento. Para eles, o polêmico remédio é a esperança para que Jair tenha mais qualidade de vida e alivie alguns sintomas, como a agressividade.
Há alguns meses, ele está internado em uma clínica especializada em cuidar de pacientes com demência, mas, em janeiro, deve voltar para casa e a família vai dar entrada na documentação necessária para conseguir o medicamento.
“Temos esperança que isso vai ajudar. A indicação [do remédio] é para que ele tenha mais qualidade de vida, que possa ficar mais tranquilo e não tenha crises de agressividade. A gente sabe que, infelizmente, não tem cura, mas temos esperança que o óleo tenha a capacidade de reverter algumas coisas para melhorar a vida dele.”
Anvisa libera venda
Recentemente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a venda de produtos à base de maconha para uso medicinal no Brasil. A iniciativa representa um importante passo para aumentar o debate sobre o tema (que ainda é bastante polêmico e divide opiniões), porém, não terá impacto no acesso dos pacientes à medicação.
A liberação anunciada pela Anvisa no começo de dezembro refere-se apenas à venda de produtos à base de maconha. O medicamento só poderá ser comprado mediante sob prescrição médica, exclusivamente em farmácias e drogarias sem manipulação.
Por outro lado, laboratórios brasileiros que tenham interesse em fabricar esse tipo de medicamento, precisarão importar o substrato da planta, uma vez que o cultivo continua proibido no país.
A maconha é usada como medicamento para tratar pacientes que sofrem com epilepsia, autismo, dor crônica, doença de Parkinson, transtornos ansiosos e depressivos, dentre outros.
Antes de a Anvisa autorizar a venda do medicamento no país, pacientes que fazem tratamento com o remédio à base de canabidiol precisavam de permissão do órgão para importar os produtos.
Utilização
A cannabis sativa é uma planta que possui cerca de 500 compostos, sendo que, aproximadamente, 100 são canabinóides que possuem componentes medicinais. Dentre eles, estão o tetra-hidrocanabidiol (THC) e o canabidiol (CBD).
A autorização concedida pela Anvisa prevê a comercialização de medicamentos que tenham, no máximo, 0,2% de concentração do THC. Medicamentos cuja indicação seja superior a esta concentração precisarão de receituário restrito, já os com concentração inferior poderão ter receituário azul (obrigatório para medicamentos que podem causar dependência) e renovação de receita em até 60 dias.
“O remédio autorizado só pode ter menos de 0,2% de THC na fórmula, mas tem pacientes que precisam de concentração maior para responder ao medicamento. Essa decisão da Anvisa abriu um pouco o debate sobre o tema, para ajudar a perder este estigma da cannabis, mas se a intenção era o acesso dos pacientes ao medicamento, eu sinto que não vai mudar muita coisa”, avalia a vice-presidente da Santa Cannabis (Associação Catarinense de Cannabis Medicinal), Raquel Schramm.
Para ela, na prática, a autorização para a venda muda pouca coisa no que diz respeito ao acesso, especialmente porque o preço para compra de medicamentos à base de cannabis gira em torno de R$ 3 mil.
“Quem não tem dinheiro, de fato, vai continuar sem acessar o medicamento, porque ele vai continuar caro. Aqui no Brasil, a gente não vai poder importar para produzir e nem manipular o medicamento que já vem pronto”, comenta, pois sem poder plantar, o Brasil não produzirá matéria-prima, apenas importará o medicamento finalizado.
“Como não é permitido o plantio no Brasil, a Anvisa só abriu para que as indústrias farmacêuticas estrangeiras forneçam o extrato pronto aqui para o país. Isso impede que a gente tenha um controle de qualidade e saiba como essa planta foi cultivada”, explica.
Santa Cannabis
A Santa Cannabis é uma organização sem fins lucrativos criada com o objetivo de fomentar os estudos dos efeitos do canabidiol em pacientes com indicação para o uso, bem como a distribuição legal de CBD e THC medicinais. Com sede em Florianópolis, a entidade atende a todos os municípios de Santa Catarina e, atualmente, faz o acompanhamento de 150 pacientes.
O propósito da entidade é levar ao maior número de pessoas a informação e o conhecimento sobre os benefícios do uso do cannabidiol e seus derivados, além de facilitar o acesso ao tratamento, ajudando, assim, a melhorar a qualidade de vida de pessoas que precisam do medicamento.
Estudos para identificar benefícios e efeitos colaterais
Para o neurologista Yuri Espinosa Garcia, o grande ganho com a determinação anunciada pela Anvisa não está na liberação para o uso do medicamento – que continua restrito, mas na ampliação do debate sobre o tema.
“É um grande problema analisar uma medicação que foi, durante tanto tempo, negligenciada e deturpada do ponto de vista social, com o uso que se quer dar hoje em dia e o escasso conhecimento que se tem do contexto geral da fitomedicina que pode oferecer essa planta.”
Garcia acredita que, antes de haver a liberação do uso do medicamento, é necessário que se façam mais estudos para compreender melhor não apenas quais os benefícios, mas, também, quais efeitos colaterais a cannabis pode provocar. Ele argumenta que, com o tempo, viu-se que determinadas substâncias consideradas lícitas tinham grande potencial de dano sobre o corpo humano que, de início, não eram conhecidas por estudos clínicos.
“O exemplo típico disso é a nicotina. A cannabis tem, aproximadamente, 6% de probabilidade de provocar dependência, enquanto a nicotina tem, aproximadamente, 35% e, além disso, hoje em dia, conhece-se o que a nicotina pode provocar para o cérebro. Sempre faço essa comparação para mostrar como, com o tempo de estudo, foi possível descobrir quais eram os prejuízos de uma substância que ainda hoje é aceita socialmente, mas que tem alto poder de dependência e tolerância, em comparação com uma substância [cannabis] que, do ponto de vista social, foi muito deturpada conforme avançavam as leis”, completa.