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Superando desafios, famílias mantêm a arte de fabricar laços de couro

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Tio Tonho mora em Cerro Negro, conhecido como a Capital Catarinense do Laço - Foto: Adecir Morais

A navalha desliza suavemente no couro cru, resultando, aos poucos, num amontoado de tentos (tiras extraídas para a fabricação de laço). Os cortes têm de ser precisos para não estragar o material.

De tento em tento, o artesão Ademir Barbosa, de 42 anos, ganha a vida confeccionando laços de couro, ao mesmo tempo em que ajuda a manter viva uma tradição. A arte de trançar laço de couro sobrevive em meio ao desenvolvimento tecnológico industrial da modernidade.

Ademir aprendeu a confeccionar laço há 20 anos. Tudo começou quando trabalhava de açougueiro em um supermercado. Descontente com o salário, ele pediu um aumento, mas ganhou um “não” de seu chefe. Desapontado, pediu demissão e passou a se dedicar à produção artesanal de laço. “Quando fiquei desempregado, um amigo me deu uma força, aí comecei a trançar”, conta o artista.

Casado e pai de três filhos, o anitense vive com a família em uma casa no Bairro Santa Helena. Suas mãos habilidosas trançam, em média, um laço a cada dois dias. Todo o trabalho é feito no porão da casa do artesão, que tem clientes por todo o Brasil.

Cada peça é vendida por cerca de R$ 750,00. “A produção vai para todos os cantos do País. Já vendi para a Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná”, afirma o artista, que sustenta a família com o dinheiro desse trabalho.

O processo de produção é lento e trabalhoso. O primeiro passo é limpar o couro – retirada da gordura, pelo e toda sujeira. Após, a peça é esticada em estacas de madeira e exposta ao sol para secar. Posteriormente, o couro é colocado de molho na água para amaciar. O próximo passo é retirar os tentos para trançar o laço, muito usado na lida campeira e em torneios.

Com o couro amaciado, o artesão começa a cortar os tentos, usando uma faca bem afiada. O trabalho requer destreza, paciência e é demorado. O artista conta que demora em torno de dois dias para fazer um laço de seis tentos. Cada peça tem de cerca de 20 metros. “Não é fácil lidar com couro, mas gosto muito do que faço”.

Ademir conta que, por conta de exigências sanitárias, há cerca de quatro anos precisou mudar o sistema de produção. Ele preparava o couro no quintal de sua casa, porém, os vizinhos começaram a reclamar do mau cheiro, assim, ele passou a preparar o couro em uma chácara, na área rural do município. No porão de sua casa, hoje ele realiza apenas a retirada dos tentos e o trançado.

Cultura centenária

Trançar laço manualmente é uma atividade centenária, fortemente relacionada com o trabalho no campo e com a figura do peão. A pesquisadora da Universidade de Pelotas, Juliana Porto Machado, explica que a criação de gado tem uma forte ligação com os jesuítas, que vieram para o Brasil no século XVI, especialmente para catequizar os índios. Aqui, usavam o gado para a alimentação e, ao serem expulsos do País no final do século 16, depois de um acordo entre Portugal e Espanha, deixaram grandes rebanhos de gado e cavalos.

Posteriormente, a região passou a ser ocupada por parte dos portugueses. No século XVIII, com a fixação das fazendas e o início das atividades de gado, os rebanhos passaram por um processo de domesticação.

Para auxiliar neste processo e no manejo do gado, foi necessária a fabricação de utensílios que facilitassem a atividade no campo. Foi neste cenário que surgiu a figura do trançador, que com destreza e habilidade, passou a fabricar peças de couro, incluindo o laço.

Em Lages, a produção de laço tem uma forte identidade histórico-cultural com o Bairro Santa Helena, que foi ocupada no início do século passado. Essa localidade foi povoada, basicamente, por moradores advindos da região de Anita Garibaldi, Cerro Negro, Campo Belo e Capão Alto, região esta que também cultiva traços marcantes do tradicionalismo gaúcho. E é nesta região, onde se concentra grande parte dos “fazedores de laço”.

Cerro Negro é o maior produtor nacional

Em Cerro Negro, uma cidadezinha com cerca de 4 mil moradores, a atividade é praticada por um grande número de famílias. Os artesãos cerronegrenses mantêm viva a cultura e a tradição, além disso, enxergam na atividade um meio de sobrevivência. Dados indicam que a fabricação de laço artesanal envolve cerca de 100 famílias do município. Todas trabalham de maneira informal.

Antônio de Jesus, de 55 anos, atua na atividade desde garoto. Com os olhos fixos nas tiras de couro e sentado sobre um banquinho de madeira, forrado com o pelego, Tio Tonho, como é conhecido, manuseia o que ele chama de “maquinha” – uma estrutura de madeira e ferro usada para trançar o laço. Morador na área urbana do município, ele conta que atua na atividade há 45 anos. Aprendeu a trançar com o pai, já falecido e hoje  produz laços de seis tentos ou 18 braças.

Após preparar a matéria-prima vinda do abatedouro, Tio Tonho, com muita paciência, demonstra habilidade nos dedos para entrelaçar os tentos. Todo o processo de produção, desde a limpeza do couro até o trançado, é feito manualmente. Além de tiras, obviamente, o laço recebe uma fita de chumbo para dar peso à peça, um fino fio de plástico para deixá-la firme, além de cola para grudar os tentos.

Ademir trança laço há 20 anos e torce para que a arte não morra

Basicamente, a arte de trançar laço é passada de pai para filho. Para não deixar a arte morrer, Tio Tonho ensinou o filho, Alessandro de Jesus. Ambos trabalham juntos em um pequeno galpão, nos fundos da residência. O dia deles começa cedo e só termina quando escurece.

A dupla produz em torno de 20 laços por mês. As peças são comercializadas na região e em feiras agropecuárias, por atravessadores. “Enquanto eu tiver força e saúde, vou continuar a lidar com laço. Não podemos deixar a cultura morrer”..

A maior parte dos trançadores cerronegrenses está no interior do município. Na família Ferreira, na localidade de Serrinha, a tradição passa de geração para geração e se tornou a principal fonte de renda, além de expressar a cultura e os costumes do povo. Seu Canózio, 50, herdou o ofício do pai e exerce a atividade há cerca de 40 anos. Produz laço com 12 braças (18 metros). As peças são vendidas para intermediários.

Um saber ameaçado pela modernidade

Atualmente, o trançado manual do laço está ameaçado pelo avanço tecnológico. Por conta do processo de industrialização e do surgimento de novas máquinas, a confecção de laço artesanal pode desaparecer. Atualmente, já é possível ver muitos artesãos usando máquinas industriais, principalmente para aumentar a produção.

Sebastião, 55, Sidnei, 37 e Eriton, irmãos e sobrinho de de Canózio, respectivamente, contam que, há cerca de quatro meses, a família comprou, em São Paulo, uma máquina para trançar laço. Objetivo é aumentar o volume de produção. O equipamento teve um custo de cerca de 10 mil. Diariamente, produz cerca de cinco peças.

Apesar da facilidade do aumento da produção, Sidnei revela que a qualidade laços fabricados na máquina é inferior. “Não está dando certo. A qualidade do laço não é a mesma. O que é feito na máquina quebra com maior facilidade e exige material (tentos) mais resistentes. Os compradores preferem o laço trançado à mão”, afirma Sidnei.

O artesão Ademir Barbosa sustenta que o número de trançadores está diminuindo com o tempo. Ele concorda que a prática tende a desaparecer, e aponta a máquina possa substituir o trabalho manual que se perdura por séculos. “A maioria das pessoas está fabricando só nas máquinas”, afirma.

Em parceria com os irmãos, Sebastião comprou uma máquina para trançar, mas o negócio não está dando certo

Outros fatores foram determinantes para o enfraquecimento da atividade. Falando especificamente de Lages, num passado recente, os artesãos que lidavam com artesanato de couro tentaram se organizar através do cooperativismo a fim de criarem melhorias de trabalho.

O projeto, porém, não prosperou, o que acabou desestimulando e afastando muitos artistas da atividade. O projeto beneficiaria cerca de 200 artesãos de Lages, muitos deles lidavam com a produção artesanal de laço. Além disso, muitos artesãos, pressionados pela fiscalização, tiveram que suspender as atividade na cidade.

Ademir afirma que não é qualquer pessoa que lida com laço. Pai de três filhos, ele demonstra pessimismo ao comentar sobre o futuro da arte de trançar, mesmo assim, defende e tem esperança que, pelo menos um de seus filhos, vai seguir o ofício. “Lidar com couro não é fácil. A gente torce que a profissão continue, mas eu duvido que essa piazada de hoje em dia queira largar o computador para fazer o que a gente faz”, enfatiza.

“Lidar com couro não é fácil. A gente torce que a profissão continue, mas eu duvido que essa piazada de hoje em dia queira largar o computador para fazer o que a gente faz.” – Ademir Barbosa, artesão

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