Geral
As mães de Lusiana
Mulheres com um passado que estava adormecido em um cantinho do coração e da memória. Talvez, algo que quisessem esquecer para evitar o sofrimento, e até mesmo pela falta de esperança. Entre as décadas de 1970 e 1990 o Brasil viveu algo que chocou a população. O tráfico de bebês.
A Serra Catarinense foi uma das regiões onde o esquema aconteceu. Devido a fragilidade dessas mulheres, que na época eram adolescentes, sem condições financeiras e muitas sem o companheiro, os traficantes aproveitavam a situação para retirar os bebês. Todas as histórias têm em comum o mistério do paradeiro das crianças.
As mães de Lusiana retrata a história de mulheres que buscaram o Correio Lageano depois da publicação da matéria de Lusiana Goldman, de 31 anos. A jovem viajou de Israel a Lages em busca da mãe biológica. Desde 2017, Lusiana conta em suas redes sociais sobre a adoção ilegal que possivelmente tenha ocorrido em Lages. Sua certidão de nascimento é falsa, por esse motivo não consegue obter dados reais sobre seu nascimento.
Além da cidade de referência, ela guarda um par de brincos de ouro com pedras verdes que acredita ser de sua mãe biológica. Com a publicação da matéria, muitas mães se encorajaram a falar sobre algo que até então não se falava. Reacendeu a vontade de encontrar suas filhas.
Irene Aparecida Padilha, de 64 anos, não acreditou quando viu a foto de Lusiana no jornal. Quem levou a matéria foi uma amiga. Irene era jovem, mãe de dois filhos que já havia doado para parentes, mesmo assim, engravidou mais uma vez. Morava em uma casa improvisada com papelões no Bairro Penha, em Lages e trabalhava para uma senhora no Bairro Sagrado Coração de Jesus.
Ela conta que a casa era muito chique e que sua “patroa” era muito atenciosa em relação a gestação. Sempre que precisava de comida, medicamentos ou ir ao hospital era a chefe quem fazia. No dia do nascimento foi a patroa que a levou. O bebê era uma menina, quanta alegria, mas Irene sabia que não teria condições de criar a filha. Por isso, sua patroa sugeriu que Irene fizesse a doação.
Ela descreve que sua patroa já tinha um casal que buscava por uma criança, inclusive em um dos quartos da casa um berço já estava preparado para receber o bebê. Chorando, ela ouviu da cozinha, um casal chegar, entrar na casa e ir para o quarto onde sua filha estava. Este fôra o último encontro das duas.
“Eu ouvi eles dizendo que colocariam um par de brincos nela”, comenta, e por esse motivo crê ser a mãe de Lusiana. Irene não lembra ao certo, mas acredita ter dado à luz em outubro de 1980. A patroa havia prometido à Irene que ela poderia ver a filha uma vez por mês, o que era mentira, já que depois daquele dia nunca mais pôde ver a criança. “Eu tentei procurar, e na época de aniversário eu sempre lembrava dela”.
Sirlei dos Santos, é natural de Palmeira, teve a filha em Lages, no HTR, aos 13 anos. O pai de Sirlei não aceitava o nascimento da criança e ela precisou da ajuda de duas amigas para fazer a doação. Em Palmeira, ela entregou a filha para uma família de Brusque.
Segundo ela, uma mulher muito elegante e aparentando ser de muitas posses, foi quem adotou. “Sempre que eu ia para Palmeira eu perguntava como estava minha filha. E as pessoas me diziam que minha filha era linda e que estava muito bem. Os anos passaram e Sirlei passou a perguntar da filha e os conhecidos diziam que ela estaria estudando e estava bem”. Sirlei teve a filha em maio de 1988.
Sirlei e Lusiana fizeram o exame de DNA, porém, duas semanas depois, receberam o resultado negativo. Mesmo assim, elas mantêm contato, afinal Lusiana visitou a casa dela. Sirlei deseja que a mãe de Lusiana seja de Lages, para que assim, possam manter contato, pois construíram, segundo ela, uma linda amizade. Sirlei segue na busca de sua filha.
Era inverno, e Santa Iolita da Silva Bernardelli, tinha apenas 14 anos. Entre 1977 e 1978, morava na comunidade Pessegueiros, interior de Lages, e engravidou. Seu pai não aceitava a gravidez, conseguiu alguns contatos e no Hospital Tereza Ramos (HTR) fez a doação. Iolita nunca procurou a filha. Anos mais tarde, deus à luz a Simone, atualmente, com 32 anos. Foi ela que procurou o CL para contar a história.
Bertulina da Silva, de 50 anos, relembra de quando precisou tirar a filha de seus braços. O marido havia ido embora para Fraiburgo em busca de trabalho, ela ficou em Lages. Prestes a ganhar sua filha, uma comadre, incentivou a doar. “Depois disso ela apareceu com umas roupas chiques, muito bem arrumada. Ela me disse que eu sempre teria contato com a menina, só que isso nunca aconteceu”, lembra. Bertulina tentou procurar, mas até hoje, não teve notícias.
Os filhos de Santa Catarina
Lior Vilk, tem 34 anos, e pelo menos há 12 anos busca descobrir o paradeiro de sua família biológica no Brasil. Meses atrás, encontrou uma prima distante. Para Lior, o mais difícil é lidar com a frustração dos negativos de exames.
Depois da vinda a Lages, Lior manteve contato com o CL e movimentou uma rede de jovens de Israel que têm em seu documento, Santa Catarina como Estado de nascimento e criou um grupo de Whatsapp.
Desde o dia 22 de março, converso, com apoio de Lior e do Google Tradutor, com as pessoas que foram levadas de Santa Catarina e têm, até hoje, dificuldade em lidar com o fato de serem adotadas.
Chen Levy Gavillon, 33 anos. Nasceu em 21 de agosto de 1985, em Bom Retiro, no Hospital Nossa Senhora das Graças.
Efrat Arendt, 33 anos. Nasceu no dia 30 de junho de 1985, em Brusque.
Limor Bergman, 28 anos. Nasceu em 4 de novembro de 1990, em Araquari/ Santa Catarina.
Jonathan Sonnenschein, de 33 anos. Nasceu no dia 25 de agosto de 1985, em Jaraguá do Sul.
Tali Belo Lauffer, de 32 anos. Nasceu em 4 de setembro de 1986, em Guaramirim.
Shir Spiegel, 33 anos. Nasceu em janeiro de 1986 em Itajaí. Foi entregue à família no Rio de Janeiro.
Gal Markowitz Cohen, de 33 anos. Nasceu em 1985 em Joinville
Orly Meiry, de 33 anos. Nasceu em 30 de novembro de 1985 em Rio do Sul. Na certidão consta o nome de Elara Pedroso Lopes como a mãe.
O esquema
Uma fonte, que preferiu ter a identidade preservada, revela que o esquema acontecia em Lages comandado por um advogado, que enviava os bebês para o litoral catarinense. Segundo a pessoa, aproximadamente 30 bebês, especialmente meninas, foram levadas para Israel, em troca de dólares a moradores da região que intermediavam o processo.
Nenhuma das mães biológicas teria recebido dinheiro, foram forçadas a doar por sugestão de pessoas próximas, alegando a falta de condições financeiras e que a criança teria uma vida melhor. Em um dos casos, uma pessoa chegou a ser paga para buscar uma mulher na maternidade, levá-la em casa e pegar o bebê, destes, alguns foram levados a Brusque.
No ano de 2016, veículos de comunicação do país entrevistaram a maior traficante de bebês do Brasil, que estava morando no litoral de Santa Catarina. Aos 72 anos, Arlete Hilu confirmou ser a traficante. “Trafiquei e essas crianças estão maravilhosamente bem. Ela foi julgada em 1988, cumpriu dois anos de prisão e, depois, em 1992 foi condenada mais uma vez pelo crime.
A quadrilha cobrava até 25 mil dólares dos casais estrangeiros pela adoção dos bebês. Muitos acreditavam que a adoção era legal. Em 2012, o jornal Diário Catarinense publicou uma reportagem especial, com uma jornalista enviada a Israel, que detalhou o trajeto, histórias de mães e de filhos.
As quadrilhas eram formadas por juízes, advogados, donos de cartórios, enfermeiros entre outros profissionais. Os principais focos de atuação eram Camboriú e Itajaí. Pelos relatos, muitas das famílias adotivas não sabiam que o processo se tratava de tráfico de bebês. Tinham conhecimento que a adoção no Brasil era mais rápida e fácil, assim, acreditavam que adoção era legal.
“Escrever a série Órfãos do Brasil foi um dos trabalhos mais gratificantes e ao mesmo tempo mais difíceis que fiz como profissional. Gratificante por conseguir alcançar a essência mais pura do jornalismo: vivenciar encontros de mães e filhas e poder contribuir e fazer parte de algumas destas histórias. Mas, ao mesmo tempo, ir a fundo na dor destas famílias, aprofundar-se nos inúmeros casos registrados nos processos judiciais, entender a culpa das mães, a dor dos filhos e ouvir os supostos agenciadores do esquema, traz uma mistura de emoção e revolta por algo tão cruel, que tomou proporções imensuráveis e internacionais. Estas famílias convivem até hoje com a dúvida, com a separação, com um passado não vivido. Meu objetivo foi e continua sendo, a busca incansável pela verdade e pela Justiça, para que todos possam ter o direito de conhecer suas origens e fazer suas escolhas.”
Mônica Foltran, jornalista enviada a Israel pelo DC, na época, para produzir a reportagem.