Os milagreios de Lages

“Por uma graça alcançada”

Frases como essa estão espalhadas nas sepulturas dos cinco principais milagreiros de Lages: irmãos Canozzi, Cigana Sebinca Christo, Menina Salete, Aline Giovana Schmitt e Frei Silvério.  A história da morte dessas figuras, que permeiam o imaginário do povo serrano, na maioria das vezes, é o que mais desperta curiosidade e também o que os fez se tornarem dignos de devoção.

 

O historiador Lourival Andrade Junior, uma referência quando o assunto são os milagreiros de cemitério, explica que aos crentes, “o que importa é que após a morte, e na maioria dos casos de forma trágica, o “santificado” não será mais julgado pelo que fez no mundo terreno (…) agora pertence à outra dimensão, ou seja, ao mundo espiritual”. A tragédia é uma forma de justificar a crença, além de qualificarem as graças alcançadas.

 

Mergulhamos na história dessas pessoas, crianças, jovens e idosos, homens e mulheres. Algumas versões, que estão na memória das pessoas, outras foram fruto de pesquisa de historiadores que se dedicam a entender as causas que fazem com que a morte se torne motivo de devoção. E também relatos de quem acompanhou a vida ou a repercussão da morte.

 

A historiadora Júlia Massucheti Tomasi, que integra a Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (Abec) e um grupo que pesquisa os milagreiros na América Latina, realizou há um mês um estudo sobre o tema. Para ela, o que caracteriza a devoção a essas pessoas, é a proximidade. “Viver na mesma cidade que seu milagreiro, poder visitar e tocar sua sepultura, fazendo os pedidos diretamente a eles, ter conhecimento sobre suas histórias de vida e morte (…) são elementos de intimidade que aproximam milagreiro e devoto, ampliando sua fé e crença”.

Suposto local do crime de Ernesto Canozzi e Olintho Pinto, conhecidos como Irmãos Canozzi. na BR-2, em Lages, onde muitas pessoas ainda fazem pedidos, oferendas e agradecem por graças alcançadas

“Irmãos Canozzi”: Um crime de 1902, lembrado até hoje

As duas primeiras décadas do século XX foram de transformações no espaço urbano de Lages. A construção do prédio da Prefeitura, o Colégio Vidal Ramos e a Catedral Diocesana são desse período. E foi nesse tempo, de certa tranquilidade, em meio aos desenhos de modernidade, civilidade e anseios de mudanças que aconteceu um crime lembrado ainda hoje.

 

As poucas ruas na área urbana presenciaram mais que a perplexidade do crime, que vitimou o caixeiro viajante Ernesto Canozzi e seu empregado Olintho Pinto Centeno, mas também a de seu suposto algoz, Thomaz Brocatto, morto pelas forças policiais quando tentava fugir.

 

Passados mais de 100 anos, a história dos “Irmãos Canozzi” ainda é motivo de mistério e permeia a memória do serrano de fé. Histórias diversas estão no imaginário religioso de quem se ajoelha aos pés da sepultura para pedir ou agradecer uma graça. Os dois foram enterrados no cemitério Cruz das Almas. Há quem acredite que eram irmãos, o que de acordo com documentos do processo e notícias de jornais da época, descritos no livro “Caso Canozzi: Um crime e vários sentidos”, da historiadora Sara Nunes, não procede. Outros têm versões sobre a morte, muitos desses relatos estão no documentário “Morte no Caveiras”, do jornalista e cineasta Fernando Leão.

 

Em 1902 os corpos de Ernesto e Olintho foram encontrados na antiga BR-2. Sara Nunes diz que não é possível ter certeza de que lá foi o local da morte, e que os corpos podem ter sido levados até lá. “O local em que o acusado do crime, Domingos Brocatto, estava caçando é bem longe, pelo menos uns 10 a 15 km”. Na época a estrada era bem diferente do que é hoje. As árvores formam um corredor e junto com duas cruzes, algumas imagens religiosas e restos de oferendas criam uma misticidade. Sobras de velas queimadas nos castiçais provam que há visita de fiéis o ano todo.

 

Essa mesma peregrinação acontece no túmulo de Ernesto e Olintho. O administrador do Cemitério Cruz das Almas, Anderson Daniel de Liz, diz que os dois são muito procurados por fiéis que anseiam por milagres. A morte violenta dos dois, quando seguiam para o Rio Grande do Sul, deixou marcas que ultrapassam o tempo. Canozzi teve os olhos perfurados e Olintho Centeno sofreu esmagamento de crânio.

 

Ernesto nasceu na Itália, tinha 19 anos e era caixeiro viajante da casa de comércio Santos & Almeida de Porto Alegre; Olintho, de quem não há muitas informações, era seu ajudante. A notícia da morte publicada no jornal de 3 de maio de 1902, do Correio do Povo, cita apenas Canozzi, que é descrito como “ativo, trabalhador e honesto”. Os acusados do assassinato foram os irmãos Brocatto, também italianos. Thomaz atuava como médico e Domingos era sócio em uma farmácia de Lages. Quem lê o livro de Sara Nunes, fica na dúvida se os irmãos foram de fato os autores do crime. De todo modo, foram julgados e condenados, Thomaz como mandante e Domingos como autor; o primeiro morreu na fuga da prisão e o segundo, em avançado estado de loucura, condenado a 30 anos de reclusão, acabou sendo assassinado por um companheiro de cela.

As motivações do crime:

“Encontrei diversos indícios de que o crime não foi passional, porque o Domingos nem estava em Lages na primeira visita de Ernesto Canozzi à cidade, onde dizem que ele dançou com a Emília Ramos. O Canozzi era noivo no Rio Grande do Sul”. Percebeu em sua pesquisa, que o Canozzi, como comerciante, desestabilizou algumas relações no comércio local de Lages no início do século XX.

 

Canozzi não eram irmãos:

A pesquisadora acredita que a confusão em tratar Olintho e Ernesto como irmãos, tem relação com o fato dos acusados da morte, os Brocatto, serem irmãos. Outro fato curioso foi que quando Thomaz foi enterrado, no Cemitério, ao lado de Ernesto. As pessoas iam acender velas para o Thomaz porque era médico e tinha uma relação com a questão da cura. Com o tempo, o túmulo do Thomaz foi completamente destruído. “O imaginário popular criou os irmãos Canozzi, e sim, a invenção das tradições sempre tem um passado histórico, nesse caso, o passado são os irmãos Brocatto, acusados do crime, mas o imaginário das pessoas construiu os “Irmãos Canozzi”. Nem toda a construção de memória é inocente, muitas vezes existe a manipulação do uso do passado para que certas coisas não sejam lembradas”, reflete Sara.

 

Religiosidade:

Sara observa que o comportamento de fé, em relação aos Canozzi, é o resultado da mistura cultural e religiosa da região Serrana. A região, colonizada por portugueses, deixou marcas de um catolicismo popular e das manifestações culturais, que acaba por construir crenças. “Os devotos não conhecem a história do crime com propriedade, mas por conta da morte violenta dos dois, a crença nos milagres faz parte do imaginário popular”, comenta.

O local indicado como sendo o da morte de Ernesto e Olintho fica nas margens da BR-2. As árvores formam um corredor e junto com duas cruzes, algumas imagens religiosas e restos de oferendas criam uma misticidade

Mortas aos 12 anos, Salete e Aline tiveram histórias trágicas

São 21 anos que separam as trágicas histórias das meninas Aline Giovana Schmitt e Salete de Fátima Madruga. O fim horrível das duas crianças de 12 anos marcou a memória dos lageanos e as tornou figuras religiosas para muitos, que peregrinam aos túmulos nos cemitérios Cruz das Almas e Nossa Senhora da Penha, em Lages.

 

No túmulo de Salete, falecida em 1965, há uma foto da menina com um vestido branco, usado na primeira comunhão, com véu na cabeça e seus cabelos negros, segurando uma vela.

 

Este é o único registro de Salete, de acordo com a família da menina, que hoje mora em Jaraguá do Sul. Na pequena sepultura, há muitas flores, balas e placas de agradecimento por graças alcançadas. Essas placas mostram-se desgastadas com o tempo e não há nome das pessoas que as colocaram lá. Imagens sagradas também ocupam o espaço, que possui uma caixa de vidro e guarda um buquê de flores de plástico.

 

As vestes, que passam a imagem de pureza, ajudaram a criar as lendas que circulam sobre Salete. Muitos chegam a comentar que a morte da criança aconteceu no dia da sua primeira comunhão, enquanto ainda usava a roupa branca. O historiador Valdemir Santos Hoffman pesquisou a história de Salete para seu trabalho de conclusão de curso.

A menina Salete desapareceu em uma festa de igreja e seu corpo foi localizado no dia seguinte. A autoria do crime jamais foi desvendada e o crime ficou sem solução

Crime não solucionado

Há mais de 50 anos, a família Madruga de Freitas, moradora de Correia Pinto, decidiu migrar para Lages. A falta de emprego para o pai, Manoel Madruga de Freitas, foi o grande incentivo. Em março de 1965, instalaram-se com os sete filhos na Rua Fausta Rath, no Bairro São Cristóvão.

 

No dia 26 de setembro do mesmo ano, a Igreja Nossa Senhora do Rosário, no Bairro Coral, realizava a festa em comemoração à padroeira. Seu Manoel e a filha mais velha, Salete, de 12 anos, acompanharam as festividades na parte da manhã. Próximo à igreja, morava a avó de Salete, Dona Benta, sua dama de companhia Lila e a filha de 10 anos da mesma.

 

Chegando em casa após a missa, Salete pediu à mãe para voltar à casa da avó, que a acompanharia na festa da igreja. A menina brincou com a filha de dona Lila até por volta das 16h30 e, em seguida, todas foram assistir à coroação da Rainha. Muito apegada à neta, Dona Benta informou ao irmão mais velho de Salete que a menina passaria a noite em sua casa.

 

De volta à festa, no meio da multidão, Salete saiu de perto da avó para procurar Dona Lila e a filha. No fim da celebração, Dona Benta passou na casa de uma irmã e voltou para casa, achando que Salete havia voltado com a dama de companhia. Chegando em casa, surpreendeu-se ao não encontrar a neta, mas acreditou que Salete havia voltado para casa dos pais com o irmão Alfredo Rignel.

 

Na manhã seguinte, seu Manoel percebeu que a filha não havia voltado para casa e nem mesmo estava com a avó. Saiu de casa cedo e partiu à procura da filha. Passou por diversos pontos da cidade, deixou mensagens em rádios, e pediu para que anunciassem o sumiço da filha.

 

Foi um amigo da família que informou o paradeiro da menina Salete. O corpo da jovem foi encontrado em uma madeireira. Quando seu Manoel chegou ao local, muitos curiosos já estavam lá e a polícia não deixou o pai se aproximar. Com os policiais, Manoel seguiu até o Instituto Médico Legal, onde passou mal.

 

De acordo com o médico que realizou a autópsia, havia fiapos de tecido embaixo das unhas de Salete, provando que a menina resistiu ao ataque. Além disso, o exame comprovou que o estupro ocorreu após o homicídio. Mesmo após investigações, o responsável pelo crime bárbaro não foi encontrado. A família se mudou para Jaraguá do Sul, onde vive até hoje.

Homenagens silenciosas à Menina Flor

No jazigo da família Schmitt, as fotos da menina loira e de sorriso largo chamam a atenção de quem passa. Principalmente, daqueles que lembram da fatídica manhã de março de 1986, ao ouvirem na Rádio Clube as primeiras informações sobre a morte de Aline. O jornalista Oneris Lopes, que na época do crime começava sua carreira como repórter, lembra com detalhes dos dias que seguiram a morte da ‘‘Menina Flor”, como ficou conhecida Aline após sua morte.

 

A comoção foi grande. O velório aconteceu na capela do Colégio Santa Rosa de Lima, onde estudava. Muita gente lotou o espaço para dar seu adeus àquela criança que nem conheciam. No dia do sepultamento, Oneris lembra que ruas ao redor do Cemitério Cruz das Almas foram fechadas devido à quantidade de pessoas que acompanhou a cerimônia. Ele ressalta que nunca viu a cidade passar por uma situação parecida. “Lages parou. As lojas fecharam. Tanto no dia do crime, quanto no julgamento dos acusados”, relembra.

 

O crime bárbaro, encomendado pela própria mãe de Aline, permanece da memória de muitos lageanos e repercutiu nacionalmente. Jornais como Folha de S. Paulo e a revista Veja, por exemplo, publicaram reportagens sobre o caso. Atualmente, o jazigo da família é coberto por vidro. O acesso à sepultura de Aline só é possível se for aberta por um responsável. É mantida limpa, mas, segundo os funcionários do cemitério, não são os familiares que fazem a manutenção. Não há velas, flores ou doces depositados para a menina Aline, como no caso de Salete. As homenagens à Menina Flor são silenciosas e podem estar ligadas ao emocional de quem viveu tudo o que seguiu após o 5 de março de 1986.

O jazigo da família é fechado, não há manifestações de oferendas ao túmulo de Aline, mas ela ficou conhecida como uma das milagreiras da cidade

Assassinato premeditado pela mãe

Na manhã daquele 5 de março de 1986, uma quarta-feira, Aline levantou cedo, como de costume, tomou café da manhã, pegou sua mochila e seguiu para a esquina da Rua Guadalaraja, no Bairro Coral, onde morava com os tios. Esse caminho era novo para a menina, que pediu para a tia para começar a ir para a escola, no Centro, de ônibus, junto com as amigas. As aulas tinham recém-retornado e a nova forma de liberdade recém-adquirida animavam Aline.

 

Naquela manhã, um Chevette sem placas seguiu a menina e assim que ela chegou à esquina, o atirador abriu a porta do carro, pegou-a pelo braço esquerdo e a alvejou com dois tiros disparados de um revólver calibre 38. O motorista fugiu em direção a Florianópolis e um motociclista tentou seguir os criminosos. Várias pessoas estavam na rua na hora do crime e logo prestaram os primeiros socorros à vítima, que foi encaminhada ao Hospital Nossa Senhora dos Prazeres, mas não resistiu.

 

Os dias seguintes foram de muita especulação sobre os motivos para o assassinato. Foram 38 dias de investigação, que chegaram a quatro suspeitos: Drougacir da Silva, que estaria dirigindo o carro; Hamilton Serafin da Costa, que fez os disparos; Dagmar Simões, mãe de Aline; e Paulo Freitas, namorado da mãe. O resultado da investigação tornou o crime mais bárbaro ainda, ao ser divulgado que a própria mãe teria sido a mandante do homicídio, para ficar com a herança da menina.

 

Dagmar, que morava em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, havia pressionado a família pelo direito à herança das filhas Andréa e Aline. Em um acerto judicial, ficou determinado que ela assumiria a fazenda, com o acordo de que uma parte era dela e outra deveria ser colocada em uma poupança em favor das filhas. Em setembro de 1985, Dagmar assumiu a fazenda e em dezembro, já tinha alugado para terceiros, vendido as 800 cabeças de gado e passado cheques sem fundo em Campos Novos. Com isso, ficou cheia de dívidas e suspeitas.

 

Com a morte de Aline, Dagmar entraria na partilha da herança. As investigações mostraram que Paulo contratou os executores e a ideia partiu da mãe. Hamilton e Drougacir aceitaram o acordo em troca de um carro novo para cada um e certa quantia em dinheiro.

 

Após a prisão, os julgamentos aconteceram em 1988, quando Hamilton e Drougacir foram condenados a 18 anos de reclusão. Em 1989, Paulo também foi julgado e condenado a 18 anos. Dagmar voltou à sala do antigo Tribunal do Júri em Lages, no atual Museu Thiago de Castro, num julgamento que durou 15 horas, onde a mãe de Aline sempre negou o crime. No fim, foi condenada a 18 anos.

 

Em 1993, sete anos após o crime, todos os acusados estavam em liberdade. Os três homens voltaram para o Rio Grande do Sul e Dagmar vive, hoje, em Cascavel, no Paraná.

As devoções à cigana ultrapassam religiões

Pedidos e agradecimentos escritos com batom, oferendas como cigarros, bebidas e doces, além de velas acesas e baralhos adornam o túmulo de uma das milagreiras mais conhecidas da Serra Catarinense. Integrante de um bando de ciganos nômades, Sebinca Christo estava de passagem por Lages quando adoeceu e morreu, em março de 1965.

 

Seu corpo foi enterrado por aqui e, aos poucos, construiu-se uma grande devoção em torno desta mulher, que se tornou conhecida por atender aos mais diversos pedidos, em especial, os ligados a relações amorosas. Passados 53 anos de sua morte, o túmulo de Sebinca, que está no Cemitério Municipal Cruz das Almas, é, seguramente, um dos mais visitados em Lages durante todo o ano.

 

Vida e morte desta emblemática personagem são objeto de estudo do historiador Lourival Andrade Júnior, que pesquisa a história da milagreira desde 2001. O assunto deu base para a tese de doutorado de Lourival, defendida pela Universidade Federal do Paraná, em 2008, e para a produção de um documentário em parceria com o cineasta lageano Fernando Leão, lançado em 2017.

 

“Continuo a investigar o túmulo dela e as devoções porque tem algo que a torna muito original e diferente de outros milagreiros do Brasil: os pedidos que fazem e, sobretudo, a forma que os fazem. Não são apenas com velas e bilhetes, como é mais comum com os outros milagreiros, mas com mensagens escritas com batom no túmulo”, explica Lourival. Segundo ele, que pesquisa milagreiros de cemitérios por todo o Brasil, até o momento não existe registro de que esta forma de pedido seja feita para outros no país.

 

Outro ponto que desperta o interesse de Lourival é o fato de que, em todo o mundo, são poucos os casos de ciganos que foram transformados em milagreiros. “A Sebinca encarna não só a religião e a fé que as pessoas têm nela. Ela encarna toda a etnia cigana que passou por Lages. Apesar de ter tido uma vida muito comum dentro do universo cigano, os relatos fizeram de Sebinca uma mulher muito maior do que ela mesma. Ela foi alçada a um panteão de milagreiros e passou a representar todos os gestos ciganos.”

De cigana comum à famosa milagreira

Natural da Grécia, a família de Sebinca saiu da Europa em meados dos anos de 1930, na iminência da II Guerra Mundial. De acordo com o estudo feito por Lourival, a família Christo fugiu de seu país de origem por medo de perseguição étnica. Eles migraram para a América do Sul, estabelecendo-se, inicialmente, no Uruguai.

 

Anos mais tarde, a família que é de ciganos nômades (não têm residência fixa e passam a vida deslocando-se de um lugar para o outro) mudou-se para o Brasil. Em 1965, enquanto o bando passava por Lages, Sebinca adoeceu, chegou a receber atendimento médico, mas não resistiu e morreu. Após alguns dias de festa (ciganos celebram a liberdade da alma quando seus entes morrem), o corpo foi enterrado em um cemitério da cidade. Ela tinha 79 anos.

 

Por causa de sua pesquisa, no início dos anos 2000 Lourival teve a oportunidade de conviver com descendentes de Sebinca, visitando-os em seu acampamento, à época, no Paraná. Por isso, os estudos são, provavelmente, a versão mais fidedigna sobre a vida e morte da cigana mais famosa de Lages.

 

A história real é muito diferente das versões propagadas por seus devotos. Há quem diga que Sebinca morreu assassinada após ser estuprada; outros dizem que ela morreu defendendo sua filha no acampamento da família; outra versão diz que a morte aconteceu por causa de um incêndio em sua barraca. São vários os boatos,mas todos retratam uma morte trágica.

 

“O que precisa ficar claro é que o que construiu essa devoção à Sebinca foram justamente os relatos da morte trágica. Essas histórias potencializaram a devoção que as pessoas têm. Se todos soubessem que a morte foi natural e aceitassem essa versão, ela, com certeza, não seria uma milagreira”, afirma Lourival.

 

Apesar de ter apenas passado por Lages e logo ter morrido, são muitos os relatos de pessoas que garantem ter convivido com Sebinca porque ela morava na cidade. Há quem diga que ela tinha o hábito de ajudar as pessoas oferecendo chás medicinais feitos de ervas e fazendo benzeduras.

 

Lourival acredita que isso aconteceu porque Sebinca acabou se tornando a representação de todas as experiências ciganas na cidade, tornando-se muito maior do que sua própria história.

 

“Muitas ciganas passaram por Lages ao longo dos anos. Faziam remédios, liam mãos, iam nas casas das pessoas visitar porque passavam recorrentemente pela cidade e acabavam criando laços de amizade. Isso não significa que elas [quem diz ter convido com Sebinca] estejam mentindo, mas é porque várias outras ciganas fizeram essas coisas e tudo isso passou a ser de Sebinca. É como se ela fosse um ímã de todas as experiências ciganas que as pessoas tiveram em Lages”.

Catolicismo não oficial brasileiro

O historiador Lourival Andrade Júnior faz levantamentos sobre milagreiros por todo o Brasil, em um estudo que ele chama de “catolicismo não oficial brasileiro”. Isto porque, segundo ele, há muitos casos, Brasil afora, de católicos e integrantes de outras religiões cristãs que cultuam milagreiros, de cemitério e fora de cemitério, que não têm relação com o cristianismo.

 

“Existem vários relatos de prostitutas, cangaceiros, assassinos, ladrões e etc., que estão no panteão dos milagreiros de cemitério por terem mortes trágicas. Para o cristão, da mesma forma como foi o martírio de Jesus Cristo, uma morte trágica purga os pecados. No caso de Cristo, ele purgou os pecados de toda a humanidade. No caso dos milagreiros de cemitério, purgam os seus próprios pecados”.

 

Os estudos feitos por Lourival são apresentados em diversos eventos relacionados à história e à educação. A biografia de Sebinca já foi apresentada em diversos congressos no Brasil e no exterior. Neste fim de ano, Lourival participará de um evento no México, onde apresentará seu estudo a respeito de outro milagreiro, o cangaceiro Jararaca, que integrava o bando de Lampião, e está enterrado em Mossoró, no Rio Grande do Norte. “É extremamente importante que a gente conheça a complexidade da religião no Brasil.

Histórias de Sebinca e Salete se fundiram com o passar dos anos

Por muitos anos após a morte de Sebinca, a mídia repercutiu a ideia de que ela foi vítima de uma tragédia, alimentando as histórias contadas por seus devotos. Segundo Lourival, isso contribuiu para a construção da devoção a ela.

 

No mesmo ano em que Sebinca morreu, Lages foi palco de um assassinato brutal. A menina Salete Madruga, então com 12 anos, foi assassinada e estuprada. Por causa da morte trágica, ela também se transformou em milagreira.

 

O historiador acredita que com o passar dos anos, o imaginário popular uniu as duas histórias, e muitas pessoas passaram a acreditar que Sebinca foi vítima de um acontecimento trágico.

De acordo com a administração do Cruz das Almas, no começo de outubro familiares de Sebinca visitaram seu túmulo e deixaram a imagem do casal de ciganos como enfeite

Netos enterrados ao lado da cigana

O túmulo de duas crianças, localizado ao lado do túmulo de Sebinca, corrobora com a ideia propagada por muitos de seus devotos de que ela foi assassinada defendendo a filha. O que poucas pessoas sabem é que as crianças são seus netos, que morreram ainda na infância.

 

De acordo com os levantamentos de Lourival, as crianças não são consideradas milagreiras, porém, há muitas oferendas como bicos, brinquedos e doces que são deixadas para elas. “Mas é para agradar à Sebinca, é uma forma tangencial de chegar à ela.”

Frei Silvério tinha o dom de cativar os fiéis

Quem caminhava pelas ruas de Lages conseguia ouvir o som da Rádio Clube, afinal, todas as casas estavam sintonizadas e o silêncio tomava conta dos lares perto do horário do meio-dia. Os fiéis aguardavam a oração de Frei Silvério. Ajoelhados e com copos d’água em frente ao rádio, os devotos, ouviam preces, orações e bênçãos do frei que reunia multidões. As falas transmitidas pela Rádio Clube sempre foram ao vivo e, segundo relatos de profissionais da emissora, ele nunca entrava no ar de improviso. Com cadernos cheios de anotações e a bíblia, o frei sempre estava preparado para os momentos de orações.

 

As missas na Paróquia Nossa Senhora Aparecida do Navio, no Bairro Vila Nova, em Lages, quando era celebrada pelo Frei Silvério, sempre eram lotadas. Não sobravam espaços nos bancos e nem nos corredores. A igreja ficava cheia.

 

Conhecido por ser um padre acolhedor, carismático e de dom especial, chegou a Lages, no ano de 1974 e saiu em 1977, mas sua missão na cidade não teria terminado, o frei retornou a cidade, em 1986, onde permaneceu até o dia da sua morte, em 4 de março de 2000. Na comunidade católica, é lembrado com muito carinho. Um padre que fez a diferença na vida de muitas pessoas, inclusive, servindo de inspiração para a vida religiosa.

 

Padre Darci Sá Sobrinho decidiu que queria ser religioso ao admirar Frei Silvério nas missas. Por participar do grupo Jovens Unidos Caminhando com Maria (Jucam), tinha contato direto com ele. Entre os 18 e 20 anos, padre Darci refletiu e, depois de muita conversa com Frei Silvério, foi para o seminário. Os anos vividos com o frei no grupo de jovens serviu como exemplo de vida. “Ele não era um padre comum. Tinha um dom especial”. Padre Darci lembra que as pregações do frei deixavam as pessoas empolgadas, além disso, as bênçãos da saúde e da família motivaram os fiéis a irem à igreja.

 

Era padre na Igreja do Navio, porém, todas as famílias queriam sua presença nos eventos religiosos importantes. Quando uma pessoa morria, mesmo que fosse em outra comunidade ou cidade, o chamavam para rezar. Também ia às escolas, dava palestras, pois era um bom compartilhador de conhecimentos.

O adeus ao frei

Padre Darci comenta que nunca soube de problemas de saúde de Frei Silvério. O que chamava a atenção é que o religioso não descansava e nem marcava um check-up de saúde. Sempre estava evangelizando. Tanto é que no dia de sua morte estava se preparando para ir à Rádio Clube. Era por volta das 6 horas da manhã de sábado, quando se sentiu mal e teve um infarto agudo. O Frei foi internado no hospital.

 

Padre Darci conta que Dom Oneres Marchiori foi ao hospital e conversou com um médico, e soube que se Frei Silvério tivesse mais um infarto em 72 horas, não resistiria.

 

Bispo e Padre Darci foram para uma Crisma, em Bocaina do Sul, e, durante a celebração, souberam da morte do religioso. Durante a missa, o bispo fez um instante especial ao frei. Ao fim da celebração, retornou a Lages para a Paróquia do Navio, onde centenas de pessoas esperavam a chegada do corpo de Frei Silvério.

 

A morte inesperada comoveu a população. O Correio Lageano noticiou na edição do dia 7 de março de 2000. Na matéria a frase de Dom Oneres que fala sobre os cuidados ao frei. “A gente sempre alertava ele para ter cuidado com os excessos. Ele trabalhava muito, mas era uma pessoa que não sabia dizer não a ninguém”, relatou o bispo ao CL. Uma pessoa da comunidade falou no dia que “é como se um pedaço da igreja desabasse. Ele era um santo”.

Milagreiro

Se em vida Frei Silvério era conhecido por ter o dom da palavra, promover pregações motivadoras e empolgadas, fazer a diferença na igreja e incentivar jovens e famílias, depois que morreu, tornou-se ainda mais prestigiado. A fé e a crença das pessoas no poder dele em conceder bênçãos fez com que se tornasse um milagreiro. Padre Darci comenta que grande parte das intercessões ao frei são pela saúde e pela família.

 

No túmulo de Frei Silvério e na Paróquia do Navio, é possível observar a quantidade de graças alcançadas pelos fiéis. Algumas placas são bordadas, outras são pintadas à mão e outras são placas de mármore. Uma placa que chama a atenção é a do radialista e ícone da Rádio Clube de Lages, Servilho Ferreira. Aos 78 anos, o comunicador que conviveu com o frei, diz que o religioso estava à frente do seu tempo, rezava com muita devoção e tinha uma benção muito forte.

 

Servilho intercedeu por meio de visitas e novenas ao túmulo de Frei Silvério, pela saúde de um familiar que estava em morte terminal. Depois das orações, o parente sobreviveu, e, decidiu colocar a placa no túmulo como forma de agradecimento.

Servilho Ferreira, conhecido radialista de Lages, conta que teve uma graça alcançada em oração ao Frei

EXPEDIENTE

Reportagem: Andressa Ramos (Frei Silvério), Camila Paes (Salete de Fátima e Aline Giovana), Núbia Garcia (Cigana Sebinca) e Suzane Faita (Irmãos Canozzi)

Fotos: Gislaine Couto

Produção de Pauta: Suzane Faita

Edição: Cláudia Pavão, Mauro Maciel e Suzane Faita

Reportagem publicada, originalmente, nos dias 2, 3 e 4 de Novembro de 2018, na edição impressa do Correio Lageano